BÔNUS: A HISTÓRIA DO CERVO E SUA GALHA

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O cervo tinha de cada lado da galhada um tipo de roseira diferente. Do lado direito — particularmente à luz do que Tom acreditava —, era a parte mais feia do animal, pois as rosas eram secas e débeis; de seus espinhos deslizava o que parecia ser uma tinta negra e visguenta. Este lado era obscuro e fazia com que Tom se recordasse de coisas ruins que ele já fez ou que já fizeram com ele; como se lhe tivessem roubado a fé que tinha em si mesmo. Ele fechou os olhos pela pressão que o galho passara a lhe impor e passou a se ver como um homem que de tão insignificante e substituível, ninguém olhava pra ele. Ele via as pessoas passarem por perto dele sem que o notassem, elas nem o olhavam ou estendiam a mão, era aterrorizante.


Em contrapartida, o lado direito da galhada florescia naturalmente; abelhas voavam entre os galhos carregando baldes cheios de mel, enquanto a cada minuto uma nova borboleta nascia de um casulo. Havia música neste lado, e com o louvor ele pôde voltar a si. Sair da influência do galho do lado esquerdo. Ele respirou tão profundamente que achou que nunca terminaria de soltar todo o ar que engoliu. Ao olhar para a galha direita, os olhos de Tom se encheram de lágrimas, e era o tipo de coisa que ele sabia que jamais sentiria outra vez. Agora mais perto, o menino podia sentir um doce aroma de alfazema, exceto, ainda, pelo mal cheiro da galhada ao lado. O cervo percebeu que alguém lhe fazia companhia.


— Por que você carrega essas rosas tão feias? — perguntou Tom ao cervo, fazendo grande esforço para não parecer medroso — Não seria mais fácil arrancá-la e fazer outra?


— Faz parte de quem eu sou — respondeu o cervo com simplicidade — Veja bem, eu não posso me desfazer de algo tão importante. O que seria de mim sem a outra galhada?


Anne, a menina que fazia companhia a Tom em suas aventuras mirabolantes, não quis se intrometer na conversa, pois achava que Tom tinha sido muito inconveniente com um animal que, na verdade, nem deveria falar. Ela se acomodou em cima de uma pedra. Era uma menina de cabelos curtos, olhos bem expressivos, a boca quase sempre delineada em um sorriso sincero. Era o tipo de menina que sempre lhe diria a verdade, se caso você perguntasse alguma coisa a ela. Nunca largou Tom, nem por um momento se quer, mesmo nas vezes em que ele quis se aventurar por lugares que ela sabia que não era uma boa ideia.


— Mas ela é a sua parte ruim, não faz...


— Exatamente — intrometeu-se o cervo — E há um convívio pacífico entre os meus dois lados. Um não interfere no outro... A não ser que eu deixe.


Tom achou que aquilo não podia ser compreendido por seres humanos, e pensou que devia parar de fazer tantas perguntas indecorosas, mas sua curiosidade era tanta...


— Desculpe, senhor cervo, mas eu ainda não compreendo.


O cervo calou-se e considerou por muito tempo Tom.


— Dentro de nós existe o bem e o mal, a tolerância e a intolerância, o egoísmo e o altruísmo, a gula e a saciedade, a avareza e a generosidade, a luxuria e a honra, a ira e a mansidão, a inveja e o desapego, a preguiça e a força de vontade, a soberba e a modéstia... — o cervo balançou a galhada para se livrar de algo que parecia incomodá-lo — Cabe a cada um aprender a lidar com as duas partes que vivem dentro de si, já que uma não pode, sob hipótese alguma, existir sem a outra. Vai contra a natureza de um ser. Humano ou não.


— Mas eu posso ser tolerável, sem ser intolerável, por exemplo — indagou Tom.


— Não haverá um só momento em que você não seja tolerável?


Mas Tom voltou à sua ideia.


— Eu posso, sim, ser tolerável sem nunca ter sido intolerável com alguém.


Os olhos castanho-claro do cervo se fixaram nos olhos de Tom com tanta intensidade que Anne desviou o olhar, aparentemente receosa de ser atingida pela ferocidade daquela fixidez. Tom, no entanto, sustentou esse olhar calmamente, e, após um momento, os lábios desencarnados do cervo se curvaram num aparente sorriso.


Cheio de mansidão e compreensão, ele falou mais uma vez:


— Mas você nunca poderá ser tolerável se nunca tiver sido intolerável, meu jovem rapaz. Como você saberá que sua tolerância é deveras sincera, se você nunca soube o que é ser intolerável? O que quero dizer é que, a certeza de que estamos fazendo a coisa certa, está, na maioria das vezes, porque um dia fizemos o que é errado.


— Não necessariamente — insistiu Tom, uma vez que não cederia tão facilmente — Algumas coisas você não precisa fazer para saber que vai dar errado.


O cervo pensou sobre isso por um momento estranhamente longo.


— Mas alguém já fez por você, não? — sua voz ainda era mansa — Uma pessoa precisou ser intolerável para que outra pudesse ter a certeza de estar sendo tolerável.


— Sim, no mínimo uma pessoa deve ter passado pela intolerância de alguém para saber o que é sofrer disso. E assim empaticamente ser tolerante com os outros.


O cervo falou pelo que parecia uma última vez, sua voz embargada de condescendência. Ele achava que Tom era muito inteligente para o porte que aparentava.


— Como eu disse, só há tolerância porque a intolerância existe. Uma não existiria sem a outra. E se uma for extinta, ninguém saberá que estará sendo tolerante ou intolerante.


Tom sorriu, orgulhoso de si mesmo por saber que discutira feito adulto.


— As pessoas têm o péssimo costume de querer destruir a sua parte defeituosa. Mal sabem elas que sem esta parte, elas deixam de ser humanas — o cervo se virou para a árvore.


— Obrigado pelo que disse e... — Tom abaixou a cabeça, envergonhado — desculpe por ter sido contra as suas palavras. Minha mãe me disse uma vez que eu devia sempre questionar.


— Sua mãe parece ser uma pessoa muito sábia — o cervo fez uma breve reverência — Pois que proveito teria as suas crenças se você concordasse com tudo que lhe dizem?


E Tom, então, compreendeu que era como o cervo e suas duas roseiras. Poderia viver eternamente entre ter tom e não ter cor.


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Este é um livro de textos acolhedoresWhere stories live. Discover now