As luzes apagavam às oito. Após isso, tudo que eu possuía era a escuridão e a maldita umidade. Eu sofria com a umidade, tossia bastante, há um bom tempo. Temia estar com tuberculose. Centenas de pessoas estavam morrendo de tuberculose neste inferno. A guerra lentamente acabava com tudo, comida, remédios e com os colhões de um homem, principalmente com os colhões. Eu não sou louco, mas temo ser um covarde. Sem coragem de levar um tiro no rabo, tive de fugir. Os alemães batiam à porta. A guerra não perdoa os covardes. Por isso me fingi de biruta, foi o único meio "decente" de não me envolver com toda essa merda. Ledo engano.

Em frente a porta do meu quarto há uma pequena prancheta branca que diz: Esquizofrenia. Grande merda. A prancheta do senhor Azimov diz demência, e no entanto, em toda minha vida, nunca vi um velhinho mais hígido.

Era 1942 e a guerra avançava. Milhares de vidas eram perdidas em prol de objetivos pífios. Os alemães sitiavam Leningrado. Uma batalha cruel demais até mesmo para nós russos. Milhares de pessoas morreram. Fome em boa parte dos casos. Os alemães queriam economizar munição. Deixe-os definhar, algum oficial idiota disse. Foi exatamente o que fizeram. Entre balas e bombardeios frequentes, deixavam com que o tempo, a fome e a doença fizessem a sua parte. Acho que a morte nunca teve tanto trabalho desde Gengis Khan.

Mas, atente-se aos fatos. Toda ação gera uma reação, e, apesar da inicial surpresa, Stalin não ficaria por muito tempo de braços cruzados à espera de Hitler em seu luxuoso palácio em Moscou. Então veio o recrutamento em massa. A mãe Rússia precisava reagir. Rápido, ou uma vez de joelhos nunca mais conseguiria se reerguer. Homens foram recrutados aos milhares. Somente as crianças, velhos e deficientes físicos foram poupados. Por enquanto. Lembro-me de quando um pequeno destacamento do exército chegou a minha cidade. Era verão. Os pássaros cantavam. Então um censo foi feito. Os homens foram obrigados a se apresentar. Alguns poucos fugiram. Eu não queria fugir. Isso apenas retardaria o inevitável. Não há lugar para os covardes nos livros de história. Então me apresentei. Era o que eles queriam, alguém disposto a tomar um tiro pelo país.

Naquela manhã fazia frio. Um frio incomum. Nada parecia estar no lugar. Fui encaminhado para um prédio ao lado da prefeitura da cidade. Uma construção verde-oliva deprimente. Centenas de homens estavam alinhados ali, numa enorme fila. Assustados, a maioria nunca havia pego numa arma. Traziam consigo malas, bolsas e alforjes. Poucos conversavam. Uma vez selecionados sabiam que deveriam partir imediatamente. Pensei na possibilidade de ser rejeitado. Não queria morrer. Queria viver, ainda era jovem, queria ser poeta, queria viajar, passar frio, passar fome, conhecer o amor, ser amado, rejeitado, destruído, esquecido e assim como uma fênix me reerguer de novo. Quase ninguém era rejeitado.

Aos poucos a fila se movia. Homens entravam numa sala e logo depois saiam cabisbaixos pela direita. Todos saiam pela direita. Aptos a servir seu país. Apenas uma vez um rapaz miúdo saiu pela esquerda e desapareceu porta afora. Seus olhos brilhavam. Estava livre, liberdade acima de tudo. Sem se preocupar em levar um tiro no rabo ele poderia tentar ser feliz, ou talvez, passar as tardes bebendo vodca enquanto as cidades ruíssem. Em qualquer um dos casos o futuro parecia promissor. Então após duas horas de espera chegou minha vez. Entrei numa pequena sala. A iluminação estava ruim. Havia um oficial sentado atrás de uma grande mesa de carvalho. Postura ereta. Centenas de fichas estavam espalhadas a sua frente. Era um senhor de poucos cabelos e olhos mortos. Ostentava várias medalhas em seu sobretudo cor cáqui. Pediu para me sentar. Uma gota de suor escorreu por minha testa. Sentei-me.

O ar estava pesado. Quase intragável. Sentia o coração bater em desatada loucura. Fiquei a espera do que viria. Meus joelhos tremiam. Então a pequena entrevista começou.

– Nome?

Não respondi.

– Você é surdo rapaz? – perguntou o oficial agora num tom mais ríspido.

Continuei em silêncio. Olhar perdido. Cabeça levemente balançando pra frente e pra trás. Deixei um filete de saliva escorrer pelo canto da boca. Sabia que era difícil, mas havia ouvido falar que os loucos e transtornados frequentemente eram dispensados do serviço militar. Havia uma chance, uma maldita chance, ainda que pequena.

– Rapaz, você tem cinco segundos para me dizer o seu maldito nome – disse o oficial dando uma longa fungada – DIGA LOGO A MERDA DO NOME, IDIOTA! – um estrondoso tapa explodiu sobre a mesa.

– Você é o Dimitri? – Calmamente respondi.

O relógio na parede marcava dez e meia. Eu não me importava.

– Ora seu grande pilantra, como ousa brincar comigo?

– Dimitri, você está aí?

– Chega! Já saquei qual é a sua. Gosta de bancar o esperto não é mesmo?

– Quem é esperto?

– Ah que grande pedaço de merda eu encontrei.

– Está tocando Mahler senhor?

– Não está tocando porra nenhuma, entendeu!?

– Ontem eu comi panquecas, estava bom.

– Vou fazer você comer a própria merda seu grande filho da puta.

– Oh não Dimitri, por favor não me machuque.

– Alexeev! – gritou o oficial – Venha aqui!

Rapidamente um soldado alto e de intensos olhos azuis adentrou o recinto. Trazia o seu rifle apoiado elegantemente de encontro ao ombro.

– Tire esse monte de merda daqui – vociferou o homem expelindo centenas de gotículas de saliva pelo ar – Mande-o para Sadovich! Mande esse bastardo pra lá. Vamos lhe ensinar como tratamos os espertinhos por aqui.

– Oh não Dimitri, não faça...

A última coisa de que me lembro foi de uma terrível dor lancinante irradiando da nuca para todo o meu corpo. De repente a escuridão envolveu o recinto. O frio subindo pela espinha. Aqueles olhos mortos a me fitar. Cheios de ódio. Então o silêncio. A inércia. O esquecimento. Um tiro no rabo não teria sido tão ruim.


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⏰ Última atualização: Nov 12, 2017 ⏰

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