A Impureza da minha Mão Esquerda

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Por Henry Alfred Bugalho



O Canhoto. Este é um dos nomes do diabo. E este era o meu apelido na escola: o Canhoto.

Em uma sala com trinta alunos, eu era o único a escrever com a mão esquerda. O único invertido. O único do avesso.

Você bate punheta com a canhota também? Me perguntavam. Eu ria, mas não respondia. (Não, batia com a mão direita mesmo). No futebol, ninguém me passava a bola.

Mas Garrincha era canhoto. Eu discutia depois da partida.

Que se foda o Garrincha! Você é o maior perna de pau.

Era um tipo de discriminação sutil e que eu nem sabia ser discriminação. Não era o tipo de coisa que faziam com que as pessoas me apontassem na rua, como ocorria com o Bambi, o bicha da minha turma; nem que me batessem no recreio, como vi várias vezes com o Tiziu, aquele "neguinho fedido" segundo os meus colegas; nem que levasse os meninos a passarem a mão em mim, como com a Tati, a "vagabunda" que todos tinham catado; nem que fosse motivo de piadas diárias, como a Rafa, que tinha a mãe desquitada.

Já adulto, não perderia ofertas de trabalho por causa disto, nem levaria uma dura da polícia, nem seria morto, nem preso, nem linchado. Ser canhoto era um pecado leve num mundo repleto de pecados muitos maiores e muito mais visíveis.

O meu problema de fato era entre eu, Deus e o diabo. O Canhoto-mor.

Eu jurava que o diabo vivia debaixo da minha cama. Ouvia na missa as histórias das tentações, de Jó repleto de chagas, da serpente no Paraíso e de Satanás aprisionado por mil anos (Apocalipse 20:7). A minha credulidade estúpida hoje me parece absurda, mas, naquele tempo, eu escutava o Canhoto respirando e revirando-se embaixo da minha cama à noite. Revaza muitos Pai-Nossos e incontáveis Aves-Marias, mas ele não se silenciava.

Às vezes, ouvia-o até sussurrando.

Você é como eu, decaído.

Mas eu não conseguia compreender como. Frequentava a igreja todos os domingos, comia hóstia e me confessava. Tentava ser um bom filho, lavando a louça até quando minha mãe não pedia. Não fazia nada para incomodar ninguém.

Então, uma noite, o diabo embaixo da cama me ordenou.

É hora. Agora é o momento de me servir. E ele me deu todas as instruções.

Levantei-me da cama e fui até a cozinha. Na gaveta, encontrei a faca mais afiada, que meu pai usava para o churrasco com os amigos, segurei com força o seu cabo em minha mão esquerda e caminhei até o quarto onde ele e mamãe dormiam. Abri uma fresta na porta e os números vermelhos do despertador digital era tudo que se via na escuridão. Era tarde. Meu pai roncava e minha mãe se mexeu na cama. A palma da mão esquerda suando na faca afiada.

Eu os amava? Mais ou menos. Eram meus pais, mas tínhamos nada em comum. Ele, sempre muito distante e grosseiro; ela, uma pessoa fraca e sem personalidade. Uma família disfuncional como todas as demais, foi o que descobri muitos anos depois.

O Canhoto guiava a minha mão esquerda. Sabe-se lá por que queria assistir-me vertendo o sangue dos meus, um holocausto ao Senhor das Trevas.

Como teria sido o meu futuro se eu os houvesse matado naquela noite?

A prisão e a desgraça, sem dúvida. E um remorso irreversível.

Quero pensar que isto foi um pesadelo freudiano, que, na verdade, foi apenas um delírio, mas eu sei o quanto me segurei para não dar aqueles passos quarto adentro e cravar a lâmina nos pescoços deles.

Não sou um assassino. Foi assim a longa conversa que tive com o diabo ao retornar para a minha cama. Ele gargalhava lá embaixo, zombando de mim.

Nunca mais apareceu.

No ano seguinte, o apelido de Canhoto deu lugar para o de Quatro Olhos. Miopia, e todos zombavam dos meus óculos com grossa armação preta. Depois me tornei o Nerd. Enfim, me tornei eu mesmo.

Mês passado, contei esta história para a minha esposa. Primeiro, ela não acreditou em mim, mas, depois de ponderar por alguns instantes, ela me disse.

Você está brincando, não está?

Não.

Você tem ideia de como isto é macabro?

Sim.

E não tocamos mais no assunto. Então, ontem, ela foi embora levando consigo a nossa filha. Sem dizer nada. Mas entendi as razões e os medos dela.

Eu sou o Canhoto. Eu sou invertido. Carrego dentro de mim este pequeno, porém aterrorizante, pecado.

A impureza da minha mão esquerdaWhere stories live. Discover now