Liris

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21 de setembro de 2066 - 04h

Após muito correr sem olhar para trás, percebo que estou seguindo na direção de uma parte menos iluminada da cidade, provavelmente no caminho que me leva ao subúrbio.

Não sei o porquê, mas algo me diz que é exatamente para lá que devo fugir.

Dentro da minha mente um turbilhão de informações se misturam.

Não consigo recordar de nada concreto, de nada que faça muito sentido. A primeira lembrança coerente que tenho é de correr, saindo de um tipo de laboratório, para depois, já exausta, buscar refúgio num prédio onde aquela maluca que roubou o meu rosto tentou me matar...

Mas será que foi ela que roubou meu rosto ou foi ao contrário?

Não sei responder esta questão, não creio que nem seja importante nesse momento. São somente dois pontos que tenho plena certeza agora: devo fugir para aquela parte escura da cidade e eu sou algum tipo de doutora, ao menos o dispositivo eletrônico disse isso.

Doutora! Doutora! Doutora! Não faz sentido!

Nem meu nome faz sentido pra mim...

Escuto um som de algo elétrico e alguns segundos depois sei que uma das minhas pernas foi atingida por algum tipo de arma.

A perna direita dá uma falhada, quase venho a me desequilibrar, mas não tenho tempo para isso.

Dou uma leve olhada para trás e vejo a doida que parece comigo correndo alucinada na minha direção.

Acredito que ela esteja a uns 200 metros, mas não consigo ver uma arma em suas mãos.

Pensando nisso, não lembro de que ela estava armada durante nosso confronto, pois teve que usar seus próprios punhos para me derrubar e de outra maneira teria sido bem mais fácil e injusta a nossa primeira luta.

Mas então se não foi ela, o que ou quem mandou aquela corrente elétrica para a minha perna.

Novamente já sei a resposta: não quero ficar aqui para descobrir!

Estou numa maratona pela vida, pois tenho certeza que esse é o objetivo desta minha fuga, permanecer viva e encontrar um lugar seguro para me esconder, mas a proximidade da minha perseguidora é algo angustiante.

Estou perto da parte escura da cidade quando escuto o mesmo som elétrico de antes e instintivamente, rolo de forma precisa para a esquerda, me levanto numa velocidade que me surpreende e retomo a corrida.

Algo me diz que ganhei um tempo precioso, até a arma ou seja lá o que for ser recarregada de energia.

Por instinto também olho por sobre o ombro e, é claro, a outra diminuiu a distância entre nós, mas não ainda de forma que eu tenha que parar para enfrentá-la e isso é bom, pois meu pescoço ainda lateja levemente devido a sua última agressão.

Ela é forte, não sei se mais do que eu, mas não quero descobrir isso tão cedo.

Mais um clique, desta vez foi mais rápido do que antes e quase não consigo escapar ao rolar desta vez para a direita.

Chego a ver pelo canto do olho faíscas saindo do asfalto e percebo o funcionamento da coisa.

A energia vem do solo, de algo abaixo do local por onde estou correndo, então basta ele pegar minhas coordenadas e fazer um disparo baseado na minha velocidade e direção.

Como sei disso?

Não faço nem ideia!

Mas descobri ou me recordei de outro fator importante: seja de onde for que estes ataques elétricos venham, eles conseguem monitorar meu corpo à distância e se estão fazendo de tudo para que eu não chegue a parte escura da cidade, só pode significar que de alguma forma eu posso fugir do ataque deles lá dentro ou ao menos dificultar isso.

Essa conclusão me dá uma sensação de alívio que acaba prejudicando meu reflexo e quando percebo já levei outra descarga elétrica, agora na perna esquerda.

Desta vez a queda é inevitável, pois ela trava por alguns segundos, mas logo volta ao normal.

Mais uma conclusão chega a minha mente numa velocidade impressionante: eles não querem ou não podem me matar. Desejam somente que eu seja atrasada para que alguém que pode e quer fazer esse serviço sujo me alcance...

Pensando nisso, viro o corpo no chão ainda deitada e percebo que a minha perseguidora está quase sobre mim, preparando a perna para chutar minha cabeça como se fosse um tipo de bola.

Consigo rir do pensamento, pois tenho certeza que a minha cópia quer se vingar dos chutes que levou naquele apartamento lá atrás, mas eu não vou lhe dar este gostinho.

Quando ela chega bem perto, dou um giro e consigo, além de evitar o seu ataque, lhe dar uma bela rasteira.

Minha perseguidora, desprevenida pela minha reação, caí com tudo de frente no asfalto e saio em disparada rumo ao breu, pisando por cima dela.

Chego a ouvir seu urro de dor quando pisei em sua mão e, não sei porque, peço desculpas mentalmente para aquela maluca que quer me matar.

Esse pensamento sádico me arranca uma gargalhada, mas fico concentrada para não ser pega de surpresa por outro ataque elétrico enquanto fujo.

O ataque não vem e finalmente consigo alcançar os prédios escuros, mas não paro, pois sei que a minha perseguidora não vai desistir tão fácil.

Preciso encontrar logo um local para me proteger ou algo para usar como arma, mas agora a escuridão não me ajuda em nada.

Sigo correndo sem olhar para trás, mas sabendo, tendo certeza, de que a qualquer momento a doida vai colocar a mão no meu ombro e me puxar.

Sei que ela quer me matar, ainda não sei o porquê e não tenho ideia se chegarei a saber, somente uma certeza me invade: talvez seja preciso matá-la antes!

Essa certeza atinge em cheio o meu peito e quase me deixa triste.

— Quase! — falo alto e adoro o som da minha voz. E completo para que a escuridão ouça muito bem:

— Venha me pegar sua louca, mas venha preparada para morrer...

E soltando mais uma risada alucinada desapareço nas sombras dos prédios, que me abraçam e protegem, ao menos por um tempo...

Quase AmorOnde as histórias ganham vida. Descobre agora