É domingo. São onze horas da manhã e permaneço deitado. Encaro a falha na pintura do teto e sinto-me patético pelos mesmos motivos das últimas semanas:
1) sou um matemático recém-formado trabalhando na oficina mecânica do próprio pai (e não é no escritório!);
2) estou de volta à casa onde cresci e
3) estou à espera dela. Outra vez.O som estridente de notificação ricocheteia pelas paredes do quarto e anuncia uma quebra no marasmo da minha manhã. Corro os dedos pelos lençóis embolados, encontro o celular e trago-o até o espaço acima do meu rosto, sem mover um centímetro da cabeça afundada no travesseiro. Desbloqueio a tela e... murcho. Ninguém procura por mim. É só um anúncio de coisas que não posso comprar e lotam a caixa de entrada do meu e-mail, todos os dias.
Eu deveria deixar minha pequena e tecnológica fonte de ansiedade diária de lado, levantar da cama e tomar um banho. Em vez disso, deslizo os polegares sobre a película de vidro e acesso minha conta no Instagram. Minha tia Lucinda acaba de publicar a foto de um coração dourado brilhante com a frase "Bom dia, pessoal". Deixo uma curtida, a única que ela sempre recebe — uma tradição patética para um cara solteiro de vinte e três anos de idade. Depois, rolo o feed o suficiente para ver que não há nada de interessante. Feito isso, abro o explorar e dou de cara com um vídeo. Não um qualquer. Um vídeo dela.
No modo selfie, o rosto delicado mas carregado de maquiagem aparece sob luzes coloridas e pulsantes. Clico na imagem em movimento para acionar o áudio. Ela canta uma música de letra questionável, cujo ritmo costumava irritá-la tanto quanto irrita a mim. Um grupo de amigas igualmente animadas e bem produzidas canta ao seu redor e, em certo ponto, ela inverte a câmera e filma o palco, sem deixar de acompanhar, desafinada, o cantorzinho sem graça.
Para completar a sessão de autossabotagem, abro os comentários da publicação.
(Imagem de um smartphone exibindo o aplicativo Instagram com uma foto de várias pessoas filmando o palco de um show enquanto papel picado colorido cai sobre elas. Abaixo da foto há diversos comentários com palavras como "linda", "perfeita" e emojis.)
Dentre os milhares de estranhos que pensam conhecê-la há sempre algum ex-colega de classe fingindo intimidade. Aquelas pessoas faziam pouco-caso dos primeiros tutoriais de maquiagem e hoje vivem a mendigar a atenção dela. É repugnante!
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CONTANDO CANTOS
Short StoryOlá! :) Este é o encontro de dois grandes interesses meus: música e literatura. Eu leio, escrevo, ouço, sinto, canto e sou levada para diferentes cantos, do coração e da imaginação. Então decidi unir as duas coisas em adaptações literárias de cançõ...