Ícaro e a Ameaça Invisível

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A lembrança mais antiga que tenho da infância está ligada a apenas um sentimento: o medo. Medo do desconhecido, do invisível, do sobrenatural. Na condição de filho único, desde sempre me acostumei a ser solitário, devido à ausência de crianças da minha idade na família. Eu era sempre cercado de adultos que me adulavam, me enchiam de presentes e se satisfaziam vendo-me quieto num canto, brincando sozinho. Eu era feliz no meu mundinho particular, eles eram felizes por não precisarem se preocupar com uma criança levada que pudesse criar milhares de problemas. Um relacionamento baseado no distanciamento.

Foi em um desses momentos de solidão que o medo em estado bruto pela primeira vez se manifestou, no arrastar de uma tarde nebulosa de domingo. Veio na forma de um pequeno palhaço alegre sobre um triciclo, em meio à penumbra do meu quarto sempre abafado e cheirando a coisas velhas. Esse brinquedo, com o qual nunca simpatizei, estremeceu repentinamente no canto em que estava encostado, virou-se na minha direção e lentamente seguiu em frente. A cena ficou gravada na minha mente como uma tatuagem: o ranger aflitivo daquelas rodinhas, o sorriso congelado e tenebroso do palhaço, o movimento uniforme do brinquedo que não era movido a pilhas ou a qualquer outra força externa que justificasse o deslocamento repentino. Isso foi demais para um pobre menininho de cinco anos de idade.

Corri, chorando, em busca de auxílio, gritando aos quatro ventos que o palhaço medonho estava vivo. Minha mãe, com toda ternura e paciência que só o instinto maternal pode prover, a muito custo me acalmou e voltamos ao quarto, onde eu deveria explicar o que estava acontecendo. Entramos no cômodo, já com as luzes providencialmente acesas, minha mãe à frente e eu agarrado à confortadora barra da sua saia, e indiquei o instrumento do meu temor. Estava parado inocentemente embaixo da minha cama. Após minucioso exame do brinquedo, do caimento do chão e do grau de luminosidade do quarto, seu parecer foi categórico: aquilo havia sido fruto da minha fértil imaginação infantil. Aliviado, acreditei no que disse com alívio, afinal como ela poderia estar enganada, logo a pessoa que me ensinou tudo o que eu sabia até então?

Mas os sobressaltos não se encerraram nesse acontecimento isolado. No decorrer dos anos, passei a tentar conviver com o fenômeno dos objetos que se moviam sozinhos, sem motivo aparente, com cada vez mais frequência. No início da vida escolar, meus colegas falavam de amigos que eles tinham e ninguém mais enxergava: super-heróis, fadas, anjos, bichos falantes. Exultante, me dei conta de quem eram aqueles que movimentavam as coisas ao redor: meus amigos imaginários! Minha satisfação só não foi completa porque eu achava uma pena não ser possível enxerga-los.

E foi essa a teoria apresentada aos adultos, que passaram a desconfiar de mim, achando que eu estava inventando histórias para chamar a atenção e criando bodes expiatórios irreais para acobertar minhas travessuras. Quando ninguém estava olhando e um copo repentinamente pulava da mesa, um vaso se espatifava contra a parede ou roupas eram arrancadas dos cabides e rasgadas, minhas explicações eram recebidas com ceticismo e palmadas, cada vez mais intensos e inclementes. Muitos diziam que eu estava me tornando um grande mentiroso, o que era uma coisa muito feia para uma criança. Entristecido por esse tipo de tratamento, ficava imaginando por que meus amigos invisíveis me deixavam em situações tão delicadas e depois iam embora.

Cheguei à pré-adolescência sob constantes olhares de reprovação e desconfiança, me transformando em um jovem arredio e estático. Passei a evitar o convívio com as pessoas ao meu redor, pois ninguém entendia o que vinha acontecendo comigo – confesso que nem eu compreendia. Também procurei deixar de lado a visão fantasiosa da vida, afinal já estava bem grandinho para me apegar a essas coisas de criança. Foi então que o horror, após alguns anos de hibernação, chegou silencioso e novamente cobriu-me com seu manto negro.

Meu pai, homem rude e avesso a televisão e leitura, somente tinha satisfação quando se entregava ao entretenimento oferecido pelo seu velho rádio de transistor que ficava na garagem, onde sintonizava estações de rádio AM. Certa noite, acompanhava distraidamente um programa com acontecimentos sobrenaturais enviados pelos ouvintes, enquanto bebia uma cerveja gelada, sentado em uma cadeira dobrável. Movido por uma curiosidade mórbida, sentei-me do lado de fora do portão da garagem e ouvi atentamente as narrativas macabras através das frestas de madeira, com crescente pavor e paradoxal fascinação. Foi então que comecei a associar os fenômenos narrados pela voz sombria do radialista com o que acontecia comigo. Através da audição daquele programa, que como presa hipnotizada eu não conseguia evitar, descobri o nome de minhas indesejáveis companhias: assombrações.

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