Capítulo sem título 2

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II

Deitei-me sob a guarita, lona estendida na areia da praia, uma toalha de banho por cima, a mochila como travesseiro. Luzes da cidade distantes. Não queria ser visto assim, ao relento. Precisava refletir, esboçar um plano.

Não planejara essa vida errante. Se tivesse pensado, esta seria uma chuva incômoda num camping de verão, e eu estaria recolhido nalguma barraca colorida, alegre, e teria um saco de dormir, uma manta para me aquecer, um fogareiro e utensílios para cozinhar. Nada disso. A realidade é que fui movido para este lugar pela lembrança dos muitos momentos felizes vividos aqui, achando que poderia reviver tais momentos. Como se houvesse uma energia miraculosa com o poder de restaurar meu ânimo e fazer germinar a vida nova de que tanto anseio.

Bem que tentei. Ao ver o mar pela primeira vez, enchi os pulmões a pleno e no mergulho já me imaginava morando ali. Achei que seria fácil obter emprego, alugar quarto. Mas tudo estava ocupado. Era o alto da temporada. Nem me deram atenção. E arriscar a fazer bijuterias, ou comprar um isopor, gelo e latinhas, e sair a vender pela praia e arredores, descartei a ideia, não era próprio do local. Chegara praticamente sem dinheiro e passados dois dias padecia de fome e sede. Havia cansaço no corpo, dor de cabeça e sono que não vinha pela necessidade de comer algo. Tinha que aguentar.

Quatro horas da manhã, acordo encharcado pela água que se acumulara aonde deitei. A poça estava sendo alimentada pela cascata que escorria do telhado da guarita. Caía chuva torrencial. Levanto e protejo minhas coisas da água. Sinto muito frio. Olho ao redor em busca de novo abrigo. Há uma embarcação ancorada na beira do rio que possui cobertura. Alojo-me ali. Procuro na mochila roupas para me trocar. Por sorte, elas estão guardadas em sacos plásticos, desses de supermercado; assim, permaneceram secas.

Uma vez acomodado, agora é a imagem da Paula que vem. Ela foi minha primeira namorada e estivemos juntos por quatro anos. Ela dizia que me amava, mas brigava comigo e me punia sempre que eu não satisfazia algum de seus caprichos. Numa dessas ocasiões, ela disse que não queria mais me ver e resolveu se afastar, indo para a casa da praia, em Quintão. Quem conhece o Rio Grande do Sul, sabe que essa é a última praia que a rodovia alcança, descendo para o litoral sul. Depois de Quintão, não há mais habitações, apenas território nativo formado de incontáveis dunas de areia capeadas por vegetação rasteira, aquela flor onze horas, e uns pequenos cactos.

Eu não aceitei a decisão dela e num ímpeto peguei o dinheiro da cozinha, que era pouco e fui ao seu encontro. Em duas horas desci no Terminal Rodoviário de Quintão. E até a casa dela eram mais oito quilômetros que percorri a pé, pois como havia dito, aquele era um local afastado, sem transporte coletivo ou táxi. Levei quase as mesmas duas horas para avistar sua casa. Com o sol a pino, pois eram umas três horas da tarde, cheguei suado, com ardência nos braços e rosto queimado de sol. "Eu não acredito!" ela exclamou nitidamente surpresa e contrariada. Sem mais, adentrou a casa. "Paula," chamei, "nós precisamos conversar."

Houve um período de silêncio na qual o único movimento foi o de uma coruja que pousou em cima do poste e me encarou agourenta. Fiz um gesto de espantá-la com as mãos. Ela grazinou e entreabriu as asas, em posição de ataque, medindo forças comigo. Foi quando ouvi as censuras de um pai furioso desaprovando o meu desatino de aparecer ali sem ser convidado. Mandou-me regressar imediatamente a Porto Alegre ou chamaria a polícia, por estar perseguindo sua filha. Tentei amenizar dizendo que ele me conhecia bem, que isso não era necessário, que queria esclarecer algumas coisas à Paula, que não podia deixar para outro dia. Só viera porque tinha a certeza de que depois dessa conversa, eu e ela faríamos as pazes e reataríamos namoro. "Ela não quer falar contigo. Respeita isso," advertiu. E tornou a casa.

Tempo de viver coisas novasWhere stories live. Discover now