Capítulo 3

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A SOCIEDADE LONDRINA NÃO ERA gentil com a filha de um louco. Muito menos no caso da órfã de um pai louco. Meu pai fora o fisiologista mais célebre da Inglaterra, fato que a minha mãe não tardava a mencionar rapidamente a qualquer pessoa disposta a ouvir. Meus pais costumavam dar festas elegantes para os outros professores que trabalhavam com ele. Muito tempo depois da minha hora de dormir, eu descia as escadas, ainda vestida com a minha camisola, e espiava pelo buraco da fechadura da sala de artes da casa onde morávamos para absorver os sons dos risos e o aroma do tabaco refinado. É ironico perceber que aqueles mesmo homens foram os primeiros a tachá-lo de louco.

Após o escandalo vir a público e meu pai desaparecer, eu e minha mãe passamos a ser ignoradas pelas companhias que chamávamos de amigos. Até mesmo a igreja fechou suas portas para nós. O governo confiscou nossa casa e o patrimonio da família, alegando que meu pai era um criminoso. Passamos vários meses sem nenhum dinheiro, confiando apenas nas orações da minha mãe e no senso de dever de alguns familiares que resmungavam com a nossa presença. Eu era pequena naquela época, com apenas 10 anos de idade, e não entendi o que acontecera. Até que, de repente, tínhamos um apartamento outra vez. Era um lugar pequeno, mas ricamente decorado, no segundo andar de um prédio perto da Charing Cross. Minha mãe me levava às aulas de piano e a uma costureira, para que ela tirasse minhas medidas para fazer vestidos. Ela também voltou a comprar ruge e outros produtos de maquiagem caros, além de roupas íntimas de cetim. Um homem mais velho vinha até o apartamento uma vez por semana, sempre no mesmo dia e hora, e a minha mãe me mandava para a cafeteria, que ficava no térreo, para fazer um lanche com biscoitos de chocolate. Ele usava uma colonia forte que mascarava um cheiro forte e pungente, contudo minha mãe nunca falou nada a respeito. Foi assim que eu percebi que ele devia ser rico. Ninguém dizia que os ricos fediam.

Quando minha mãe finalmente sucumbiu à tuberculose, aquele senhor não teve o menor interesse em continuar sustentando a filha magricela de sua amante. Ele pagou o funeral da minha mãe, embora não tenha comparecido, e me deixou continuar no apartamento por uma semana. Em seguida, enviou uma faxineira severa que encaixotou e vendeu nossas coisas, e ela me entregou em dinheiro o valor da venda. Não tenho dúvidas de que ele se considerava generoso. Eu tinha 14 anos na época e estava completamente sozinha.

Felizmente, o professor Von Stein, um ex-colega do meu pai, ouviu a respeito da morte da minha mãe e perguntou aos administradores do Kings College se havia algum emprego adequado para uma mulher jovem com uma criação refinada. Quando descobriram quem era o meu pai, entretanto, a melhor oferta que eu recebi foi me tornar parte da equipe de limpeza da Sra. Bell. O salário mal dava para pagar por um quarto em uma pensão com outras 20 garotas da minha idade. Algumas eram órfãs; outras vinham para a cidade para ajudar a sustentar irmãs e irmãos mais novos, e algumas ficavam ali apenas por apenas uma semana antes de desaparecerem. Todas nós tínhamos histórias diferentes. Mas todas estávamos sozinhas. 

        Eu dividia o quarto com Annie, uma garota de 15 anos que viera de Dublin e trabalhava em uma loja. Ela tinha o hábito de mexer nas minhas coisas, independentemente de eu estar no quarto ou não. Certa vez ela descobriu a caixa de madeira, lacrada e trancada a chave, que eu guardava no fundo do nosso armário. Eu nunca disse a ela o que havia dentro, não importava o quanto ela me implorasse para saber. 

        Na noite em que matei o coelho, escondi o diagrama debaixo do meu travesseiro. No trabalho, no dia seguinte, eu o enfiei por dentro das minhas roupas, como um talismã.Ele enchia cada um dos meus pensamentos com lembranças do meu pai. Cada memória, cada gesto, cada palavra gentil dele foi encoberto pelos rumores horríveis que eu ouvira nos últimos anos.

          Consegui escapar do meu esfregão para encontrar a Sra. Bell na lavanderia torcendo toalhas. Seus olhos azuis, estreitado como se soubesse que eu estava aprontando alguma coisa, cruzaram os meus em meio às nuvens de vapor.

A Filha Do LoucoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora