Body and Soul

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O frasco de xarope jazia de lado sobre a pequena mesa da cozinha, junto aos retos malcheirosos do almoço do dia anterior. Moscas iniciavam o que Francesco Redi chamou de hipótese da geração espontânea séculos atrás, depositando seus ovos na carne apodrecida exposta, a que ele esquecera de pôr no congelador. Dali a alguns dias — já que ele não tencionava limpar coisa nenhuma em seu apartamento — alguém contemplaria o fascinante e asqueroso nascimento dos vermes fervendo do interior pútrido.

Dali a algumas horas, também, alguém daria por sua falta e se depararia com seu corpo intumescido e cianótico sobre o tapete rasgado na sala.

Ele não lembrava se havia comido hoje, nem mesmo ontem à noite. Seu estômago doía, reclamava contra o excesso de álcool. O olhar lânguido vagueou pela sala, à deriva. Mirou no cartão desgastado, no CD de Billie Holiday, ambos repousando no centro de madeira da sala. Um cristal despencou no centro de seu crânio, criando efêmeras ondulações em sua visão, como uma folha perturbando a superfície de um lago. Com a mão dura, limpou o suor frio em suas frontes.

Vislumbrou de relance seu reflexo num dos móveis; não pode discernir se a distorção era fruto de sua mente ou do jogo de luzes. De todo modo, encarou o homem observando-o através das órbitas escancaradas. A midríase era o primeiro sintoma que ele sempre notava; em seguida, vinha o amortecimento. Adorava esse em particular. A sensação de estar desligado de qualquer peso tangível, orgânico, de ter seu espírito elevado de alguma forma cujo o entendimento lhe escapava a compreensão. Transcender. Deu um gole na mistura em sua caneca, cuja receita aprendera nos seus anos como um universitário. Sem pedir licença, lembranças daqueles dias povoaram sua mente: sexo bagunçado no campus, baseados entre uma aula e outra. Meneou a cabeça, e seu outro eu — o psicodélico, esculpido em ondas imprecisas, moles, inconsistentes — o imitou.

(Que merda tenho feito da minha vida?)

À ocasião do questionamento, proferido num sussurro agressivo, o corpo foi tomado de pungente inquietação, o sistema nervoso elaborando movimentos involuntários em seus membros, tiques estranhos aqui e ali.

Talvez, ocorreu-lhe, o pessimismo tão constante em seus pensamentos interferira de forma quase mística em sua vida. Não era uma merda dessas que aquele sujeito dizia? Algo sobre sermos co-criadores de nossas realidades, sendo nossa mente uma força inexplicavelmente poderosa. Não importava agora. Ele já estava determinado.

Sorveu outro gole, as feições retorcendo-se. Diferente da instrução de seus amigos, Gael não acrescentara refrigerante ou balas dissolvidas para melhorar o sabor do Sizzurp. Era uísque e xarope para tosse, apenas. Nunca dedicara muito tempo de meditação a questões metafísicas, mas, se pudesse escolher a forma que chegaria ao outro lado do véu, preferiria fazer sua entrada com o amargor de suas decisões queimando em sua língua.

Olhou para o revolver cromado repousando serenamente ao seu lado. Magic Sam criava fantasmas em forma de som, espalhando-os através dos cômodos frios e solitários. Pensou em dançar, seu último ato naquele espetáculo hediondo chamado viver, mas seu cérebro se recusou a enviar a corrente de informações aos seus membros. O que ele não tardou em obedecer, no entanto, foi ao comando de pegar a arma e enfiar no interior ressecado de sua boca; o fez num átimo, sem questionamentos.

Devagar, lambeu a coisa fria e dura. Tinha um gosto estranho, algo como pólvora, já que fora usado não fazia muito tempo. Num impulso involuntário, seus olhos pousaram na perfuração redonda maculando parede à oeste. Um acidente, ele dissera aos seus amigos (Estava limpando essa maldita coisa, mas esqueci de remover a munição. É, eu sei. Foi estupidez de minha parte. Não se repetirá).

Chegaste ao fim dos capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Aug 03, 2017 ⏰

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