LIVRO XVII

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Calça Telêmaco, ao raiar da aurora,
Belas sandálias, forte lança adapta:
"Irmão, disse o pastor, corro açodado;
Sem que me veja minha mãe, duvido
5 Que ela suspenda o lagrimoso luto.
Nosso hóspede infeliz, eu to prescrevo,
Guia à cidade; ali seu pão mendigue,
Nem faltará quem dê: com tantas penas,
É-me impossível sustentar a todos.
10 Não se agrave, é pior; praz-me a franqueza."
E ele: "Nem quero me deter no campo;
Melhor, amigo, esmola-se nas ruas.
De útil ser aos currais não sou na idade,
Nem de curvar-me em tudo à voz de um chefe.
15 Anda; irei com teu servo, assim que ao fogo
Me aqueça e alteie o Sol: com tais vestidos,
Longa a via se diz, o orvalho temo."
Do Laércio o querido veloz parte,
Semeando na mente o mal dos procos.
20 Chegado, a uma coluna encosta a lança
Entra o portal marmóreo: é visto logo
Da ama Euricléia, que em dedáleos tronos
As peles estendia, e vem chorando;
Beijam-lhe em torno as mais a testa e os ombros.
25 Sai, de Artêmide igual e da áurea Vênus,
Da câmara Penélope, a seu filho
Consigo estreita, o rosto e pulcros olhos
Terna lhe oscula, e suspirando geme:
"Eis-te, meu doce lume! não mais ver-te
30 Cria, dês que a saber do pai notícias,
Oculto e a meu pesar, te foste a Pilos.
Conta-me o que passaste." — "Ó mãe, responde,
Livre eu do risco, o pranto não me excites.
Lava e de limpas vestes cinge o corpo;
35 Com tuas servas monta, aos numes vota,
Vingue-me Jove, inteiras hecatombes.
À praça irei chamar um forasteiro
Que também embarcou-se, e adiante veio
Com meus divos consócios; no ausentar-me,
40 A Pireu confiei sua hospedagem."
Vozes tais sem efeito não voaram:
A mãe lava-se e veste, aos numes vota,
Se o vingar Jove, inteiras hecatombes.
Atrás com dous alãos e em punho a lança
45 Graça divina a lhe infundir Minerva,
No garbo o admira o povo; em roda os procos,
Traição n'alma incubando, o lisonjeiam.
Ele se afasta, e ao pé de amigos velhos
De Ulisses vai sentar-se, de Haliterses,
50 E de Antifo e Mentor, que o interrogam.
O lanceiro Pireu pela cidade
O hóspede guia ao foro, e a poucos passos
A Telêmaco diz, que os topa e encara:
"De minha casa aqueles dons, amigo,
55 Manda buscar." — Telêmaco responde:
"O que será, Pireu, nós ignoramos.
Se matam-me em segredo e o meu partilham,
Goza esses dons, não eles; se triunfo,
Então ledo a mim ledo os restituas."
60 Do hóspede miserando aqui se apossa,
Condu-lo ao seu magnífico aposento;
E, em poltronas e escanos posto o fato,
Banham-se em lisas tinas; das criadas
Sendo ungidos e envoltos em felpudas
65 Moles capas e túnicas macias,
Recostam-se em camilhas. Qual das servas
Água lhes verte às mãos, qual mesa limpa
Desdobra; a despenseira atenciosa
Traz com pão reservadas iguarias.
70 Senta-se a mãe junto ao pilar defronte,
Um volve tênue purpurino fuso.
Refeitos já, Penélope queixou-se:
"Ao toro, filho, subirei viúva,
Quem lágrimas ensopo desde a empresa
75 Letal, e antes que intrusos nô-lo empeçam,
De teu pai as notícias não me fias!"
E ele: "A verdade, minha mãe, te exponho.
A Pilos navegamos; recebeu-me
O maioral Gerênio, como a filho
80 De fresco vindo ao lar pós longos anos,
E houve-se amiga a sua ilustre prole.
De Ulisses nada ouviu; mas num seu carro
A Menelau me fui, com quem vi junta
Helena, a causa de fatais horrores.
83 De ir à divina Esparta o régio Atrida
Perguntou-me a razão: contei-lhe tudo.
Indignado o valente: "Hui! vis imbeles
De um guerreiro completo ao leito aspiram!
Se de mama os cervatos mete em pouso
90 De um leão cerva incauta, e ao vale ou bosque
Vai pascer, no covil os traga a fera:
É como os tragará na volta Ulisses.
Permiti que se mostre aos pretendentes,
Ó Jove, Palas, Febo, como em Lesbos,
95 Quando ao provocador Filomelides
Prostrou na luta, com prazer dos Gregos:
A boda em breve acerba lhes seria.
Dir-te-ei sem rebuço o que me imploras:
Descobriu-me o veraz marinho velho
100 Que em pranto o vira, e que o retém Calipso;
Que dessa ilha, sem baixel nem vogas,
Romper o dorso equóreo não podia. —
Assim de Menelau sendo informado,
Cá regressando, com favônias auras
105 Conduziram-me a Ítaca os Supremos."
Comovida Penélope, exclamou-lhe
Teoclímeno vate: "Ó veneranda
Mulher de Ulisses, muito ignora o filho;
A profecia escuta: a Jove atesto,
110 A mesa hospitaleira, a que me asila
Casa do forte herói, que já na pátria,
Ou quedo ou serpeando, ora o castigo
Traça do mal. Telêmaco os agouros
Que observei no baixel, presente os soube."
115 A quem Penélope: "Oxalá se cumpram!
De mim terás penhores de amizade,
Que hão de, hóspede, aclamar-te venturoso."
Ao pórtico, entretanto, os pretendentes,
N'área onde a contumélia exercitavam,
120 A disco e a dardo se entretêm jogando.
Já do pastio as greis se recolhiam,
E admitido aos festins, Médon graceja:
"De jogos basta, ó jovens, ao banquete;
A seu tempo um jantar é bem cabido."
125 Entram; pousando os mantos em poltronas,
Para o convívio imolam gordos porcos,
Ovelhas, cabras e armental novilha.
Ir do campo à cidade se dispunham
Ulisses e o pastor, que diz primeiro:
130 "Por guarda, hóspede, aqui te aceitaria;
Mas, prescreve-o Telêmaco, partamos,
Se é teu desejo: de um senhor me custam
Repreensões e ameaças. A caminho;
O dia aumenta, e esfriará de tarde."
135 Presto Ulisses: "Recordo-me e compreendo
Vamos, tu me dirige; um bordão corta
Em que me apoie na escabrosa rota."
E o remendado alforje por seus loros
Às costas prende. O maioral porqueiro,
140 Fornecido o bordão, fiando a casa
Aos bons servos e aos cães, vai conduzindo
E sustendo seu rei, que parecia
Decrépito mendigo esfarrapado.
Já, por áspera via, à fonte chegam
145 De alvo cristal, de que a cidade bebe,
Construída por Ítaco, primeiro,
Nérito e Politor, bosque o circula
De uns aquáticos choupos; frio o arroio
Da penha rui; tem ara as ninfas no alto,
150 Em que todo o viandante sacrifica.
De Dólio o filho os encontrou, Melanto
Que ia, com dous zagais, levar aos procos
Do cabrum gado a flor. Minaz, ao vê-los,
Ao Laércio pungiu com seus doestos:
155 "Um mau leva outro mau; deus há que sempre
Une os iguais. Aonde, ó vil porqueiro,
Guias esse glutão, das mesas peste,
Que aos portais gaste os ombros, não caldeiras,
Armas não, sim migalhas pedinchando?
160 Venha dos meus currais para vigia,
Expurgue o lixo, traga aos chibos folhas;
Beberá soro e criará panturra.
Mas, vadio chapado e mestre em vícios,
Trêmulo a escorregar por entre o povo,
165 Quer encher o bandulho insaciável.
Se ele aos paços reais, eu to asseguro,
Do grande Ulisses for, de mãos nervosas
À cabeça, voando-lhe escabelos,
Tem de a partir, moê-lo ou derreá-lo."
170 Na perna eis louco um pontapé lhe senta:
Firme Ulisses da trilha nem se arreda;
Cogita se a cajado o estire e acabe,
Ou se o erga e no chão lhe esmague a testa;
Mas coíbe-se e atura. Eumeu rebenta,
175 Alça as palmas a orar: "De Jove ó Náiades,
Se de anhos e cabritos coxas pingues
Ulisses te queimou, torne, eu vos rogo,
E um deus nô-lo encaminhe! A ti, cabreiro,
Dissipavam-se os fumos com que arruas,
180 A zagais incumbindo o pobre gado."
E Melanto: "Hui! que rosna o cão matreiro?
Olha, que, em negra nau socado, ao longe
Não vão por mantimentos escambar-te.
Assim, de Apolo às frechas ou dos procos
185 Hoje aos golpes, Telêmaco sucumba,
Como é perdido para sempre Ulisses."
Então ambos deixou, que lentos andam,
E em casa do senhor sem mora entrado,
Põe-se em face de Eurimaco, de todos
190 O seu maior amigo; os moços carne,
Pão lhe abastece a ecônoma. Os dous chegam,
Ouvem cantar ao som da lira Fêmio;
Toma Ulisses a destra e ao pastor fala:
"O palácio real este é suponho;
195 Entre os mais facilmente se distingue,
Por seus andares, átrios, muro e ameias,
E bífores portões inexpugnáveis:
Que se está num banquete o nidor mostra;
Mostra a lira, às funções divino adorno."
200 Tu respondeste, Eumeu: "Não lerdo, amigo,
Em tudo acertas. Consultemos: queres
Primeiro oferecer-te, eu cá ficando;
Ou ficar, entrando eu? Resolve, e presto;
Se fora alguém te vir, talvez te espanque
205 E te repulse." — E o paciente Ulisses:
"Percebo o que ponderas. Vai, que é tempo;
Suportar sei feridas e pancadas:
Afeito à guerra e às ondas e a reveses,
Por estes passarei. Mas, não to escondo,
210 Conselheira do mal urge-me a fome,
A fome, que entre vagas furibundas,
Armadas leva contra alheias terras."
Aqui, deitado um cão, de orelhas tesas
A cabeça levanta, Argos tem nome:
215 Hoje langue, e o nutria o próprio Ulisses,
Antes que se embarcasse. Costumava
Lebres caçar e corças e veados;
Ora de bois e mus no esterco o deixam,
Que às portas se amontoa, enquanto os servos
220 Para estrume da lavra o não carregam.
Jazia ali de carrapatos cheio,
E meigo, assim que a seu senhor fareja,
As orelhas bulindo, agita o rabo;
Mas não pôde acercar-se. O bom Laércio
225 Uma lágrima enxuga às escondidas,
E questiona o pastor: "Um cão tão belo
Pasmo que esteja, Eumeu, nesse monturo;
Talvez, com tanto garbo, ágil não fosse,
E à mesa por formoso é que o tratavam."
230 "É do herói, dis Eumeu, roubado à pátria!
Pasmaras sim, ligeiro e forte e guapo
Se fosse qual no tempo era de Ulisses:
O animal dele visto, ou rastejado,
Não lhe escapava em brenha ou fundo vale.
235 Morto meu amo, enfermo e débil Argos,
Negligentes mulheres nunca o pensam:
Do senhor quando a voz não soa, escravos
Furtam-se a obrigações. O Altitonante
Metade anula da virtude ao homem
240 Que a triste luz da servidão respira."
Argos nesse momento, após vinte anos
Seu dono a contemplar, morreu de gosto.
Eumeu vai-se direito aos feros procos;
No atravessar, Telêmaco lhe acena;
245 Ele, em circuito olhando, um banco puxa,
O do trinchante cozinheiro, e em face
Do príncipe repousa. O arauto à mesa
Traz-lhe pão do açafate e o seu conduto.
Curvo ao bastão se arrima e surde Ulisses,
250 Como um rafado esquálido mendigo;
Dentro ao fraxíneo limiar descansa,
No umbral cuprésseo encosta-se, que destro
Esquadrara e polira um carpinteiro.
Sólido um pão Telêmaco tomando,
255 E nas mãos quanta carne lhe cabia:
"Do hóspede, Eumeu, lhe disse, o quinhão leves;
Ele esmole depois da sala em torno:
A vergonha a pedintes é nociva."
Do hóspede Eumeu de pronto se aproxima:
260 "Este quinhão Telêmaco te manda;
Quer pelos circunstantes que mendigues:
A vergonha a pedintes é nociva."
Sem demora o prudente: "O rei Satúrnio
A Telêmaco adite, e lhe conceda
265 O que tem no desejo!" —Aceita Ulisses
A mãos ambas os dons, que aos pés coloca
Sobre o indecente alforje; enquanto come,
Fêmio divino à cítara cantava.
Cessa a música, e os procos tumultuam.
270 Ao Laércio apropinqua-se Minerva,
A exortá-lo a pedir aos pretendentes,
A conhecer qual duro ou justo fosse,
Bem que a nenhum exima do castigo.
A mão pela direita ia estendendo,
275 Como vero mendigo; os mais piedosos
Dão-lhe, quem era atônitos indagam.
Melanto os interrompe: "Ó da rainha
Dignos amantes, eu não sei quem seja,
Bem que visse o porqueiro a dirigi-lo."
280 Minaz Antino contra Eumeu dispara:
"Aqui, pastor famoso, o endereçaste?
Os desmancha-prazeres já não bastam
Que esta cidade infestam? poucos julgas
E à mesa de teu amo esse outro queres?"
285 Tu retorquiste, Eumeu: "Bom és, Antino,
E não discorres bem. Que homem convida
Vindiço algum sem préstimo e sem arte?
Um médico, um profeta, um marceneiro,
Um deleitoso músico divino,
290 Estes granjeia e atrai a imensa terra;
Mas ninguém chama um comedor inútil.
Aos servos és de Ulisses o mais duro,
Mormente a mim: que importa? eu nada temo,
Enquanto aqui Penélope sisuda
295 E o divinal Telêmaco viverem."
Telêmaco ajuntou: "Cala, és sobejo
Em responder. Com chascos sempre irrita,
Provocando a imitá-lo os companheiros."
E então virou-se: "Antino, como o filho
300 Me governas, meu hóspede enxotando:
Um nume o não permita. A mal não tenho,
Amo à larga lhe dês; perde o receio
De minha mãe, dos servos desta casa.
Mas um tal pensamento nem te ocorre:
305 Comer sem repartir é teu cuidado."
Replicou ele: "Altíloquo Telêmaco,
Soberbo destemperas? Dessem-lhe outros
Como darei, que ao menos por três luas
Daqui se iria." Então levanta e mostra
310 O escabelo que estava aos pés luzidos.
De carne e pães o alforge os mais lhe enchiam.
Ei-io à soleira a desfrutar se volta
As esmolas dos Gregos; junto pára
De Antino e clama: "Tem piedade, amigo;
315 Não te creio o pior, no aspecto régio
Vê-se que és maioral: dá mais que os outros,
E hei de louvar-te pela imensa terra.
Já ditoso habitei palácio altivo,
E acolhi peregrinos e indigentes;
320 Servos em cópia tive, e a pompa toda
Com que os mortais se inculcam venturosos.
Quis Júpiter porém, para meu dano,
Que ao rio Egito eu fosse com piratas:
Mantenho a bordo a gente, e as naus em seco,
325 Despacho exploradores. Estes néscios,
A impulsos do apetite, agros talando,
Matam, mulheres e crianças preiam;
Mas, ao rumor, de madrugada acorrem
Éqüites e peões erifulgentes
330 A juncar a campina, e o Fluminante
Medo incutindo aos meus, nenhum resiste:
Cercados sendo, a bronze agudo expiram,
E é reduzido o resto a cativeiro.
Ao rei Dmétor Iáside fui dado,
335 Que transportou-me a Chipre onde imperava:
Dali vim cá, passando horríveis transes."
Torvo Antino: "Que peste um deus nos trouxe!
Desta mesa te aparta, ao meio tem-te:
Olha outro Egito e Chipre não te amarguem.
340 Descarado mendigo, a sala corres,
E cada qual, nadando na abundância,
Do alheio às cegas e sem dó largueia."
E afastando-se Ulisses: "Hui! não quadra
Com teu desplante o siso: à tua porta
345 Mesmo sal a um pedinte recusaras,
Tu que do alheio na abundância nadas,
E um pedaço de pão sem dó me negas."
De cólera abafado, o encara Antino:
"Já que insultos proferes, fico-te ora
350 Que não saias daqui sem vitupério."
E despede o escabelo, que lhe apanha
Do ombro direito a ponta: firme rocha,
Do tiro zomba, tácito a cabeça
Meneia e urde vingar-se. Ao portal volve
355 Com seu provido alforje: "Amantes, clama,
Da grã rainha, est'alma vos descubro:
Mágoa e opróbio não é feridos sermos
Em defensa dos bens e bois e ovelhas;
Mas Antino feriu-me, porque a fome,
360 Causa de infindos males, me atormenta.
Se o pobre é caro aos numes e às Erínies,
Antes do seu noivado a morte o sorva!"
E o filho de Eupiteu: "Come tranqüilo,
Ou mosca-te, importuno, antes que os servos
365 Por mão ou pé rojando-te, insolente,
Retalhem-te esse corpo." — Os mais se indignam,
E um diz: "Por que esse mísero maltratas?
Nume será talvez: que em trajo os numes
De peregrinos as cidades vagam,
370 Mil formas revestindo e inspecionando
A dos homens justiça ou petulância."
Ele surdo mofafa; mas seu golpe
A Telêmaco no íntimo doía,
Que mudo, a ruminar, também meneia,
375 Sem verter uma lágrima, a cabeça.
Ouviu dentro Penélope o sucesso,
E imprecou: "Tal o fira o arqueiro Apolo!"
Mas a ecônoma Eurinoma: "Valessem
Pragas nossas, que um só do rubro eôo
380 Não reveria o coche." E inda a senhora:
"Maus, ama, todos são, maquinam todos;
Porém Antino iguala a nera Parca.
Da penúria impelido, um miserável
Pedia esmola: os príncipes lha davam;
385 Ele o escabelo à espádua arremessou-lhe."
Ceava o herói; na câmara entre as servas
Desabafa Penélope, e chamado,
Ao bom pastor ordena: "Eumeu divino,
Aqui venha teu hóspede informar-me,
390 Pois ter parece errado pelo mundo,
Se viu, se há novas do sofrido Ulisses."
A quem Eumeu: "Deixassem-te, ó rainha,
Os Aquivos silentes escutá-lo,
Para no imo folgares! De um navio
395 Em meu teto abrigou-se, e por três noites
E três dias narrou seus infortúnios,
Se todos memorar. Quando um poeta
Canta inspirado e cessa o doce canto,
Que o repita anelamos: tal na choça
400 Me aconteceu. Inculca-se de Ulisses,
Paterno amigo, da Minóia Creta;
Que veio cá ludíbrio da fortuna;
Que dos Tesprotes soube que opulento
Já teu marido à pátria se encaminha."
405 "Pois tudo me refira, insta a senhora.
Eles ao pórtico e na sala jogam;
Porque poupam seus víveres, a servos
Só nutrindo, e em banquetes nesta casa
Diariamente à grande nos consomem
410 Cabras e ovelhas, bois e ardente vinho.
Falta varão que ensine esses intrusos;
Ulisses nos ressurja, e incontinenti
Punirá com seu filho audácia tanta."
Nisto, espirra Telêmaco, estrondando
415 Em redor; a mãe solta uma risada:
"Vai pelo hóspede, Eumeu. Sentiste agora
O espirro de meu filho às vozes minhas?
É que infalível morte os cerca todos.
Se o teu mendigo, na memória o imprimas
420 Falar verdade, espere bons vestidos."
Apressou-se o pastor: "Hóspede padre,
Quer-te a mãe de Telêmaco sisuda
Inquirir do marido, angustiada.
Sê franco, e a roupa ganharás precisa,
425 Capa e túnica: o pão, que mate a fome,
A quem quer pedirás de porta em porta."
"Nua a verdade, Eumeu, responde Ulisses ,
Vou revelar à comedida Icária:
Dele sei tudo, e padecemos juntos.
430 Receio o ruim tropel dos pretendentes,
Cuja violência o férreo céu penetra:
Um com cego furor, pouco há, vibrou-me
Golpe que me doeu; nenhum dos outros,
Nem Telêmaco, obstou. Portanto, amoestes
435 A conter-se a rainha até Sol posto;
Ao depois, do marido me interrogue,
Sentada ao lar: primeiro eu supliquei-te;
Rotas as vestes, bem conheces, tenho."
Volta o pastor, e ao limiar Penélope:
440 "Que é dele, Eumeu? que pensa? há de alguém medo,
Ou da casa vergonha? Ai do pedinte
Mui fácil em vexar-se!" — E Eumeu: "Rainha,
Falou como o fizera o de mais tino,
Os prepotentes príncipes receia;
445 Roga-te paciência até Sol posto.
Conversardes a sós é preferível."
Penélope acudiu: "Quem quer que seja,
Lerdo não é. Convenho tais perfídias
Nunca os maiores monstros intentaram."
450 O divino pastor, isto acabado,
Aos demais se reúne, e a fronte inclina
Em voz baixa a Telêmaco advertindo:
"Ó dileto a cuidar me vou dos porcos,
Dos teus bens e dos meus. Tem cobro em tudo,
455 E vigia-te e guarda: o mal projetam
Ímpios, a quem primeiro o Céu castigue!"
"Sim, pai, torna o mancebo acautelado.
Anda, merenda, a noite não te apanhe;
De manhã traze as reses do costume.
460 O mais fica a meu cargo e dos Supremos."
Senta-se Eumeu de novo, e bebe e come,
Do recinto saindo, a casa deixa
Plena de comensais, que, ao vir a tarde,
A dançar e a cantar se divertiam.

ODISSÉIAWhere stories live. Discover now