Céu mecatrônico

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A claridade pálida era quase indistinta entre prédios e letreiros de neon. Era algo inalcançável, para além do mundo caótico da Cidade. Ainda que eu pudesse imaginar o esplendor, aquilo era algo que jamais poderia tocar com minhas mãos imundas. O céu isolado acima da cidade e das núvens de ácido. Uma ilusão de existência ao qual jamais poderia me comparar:

― Ei, vai pagar ou não? ― perguntou uma voz eletrônica desgastada. Virei a cabeça para encarar o homem gordo com metade da cabeça recorberta por metal.

― Claro, aqui. ― falei, passando o pulso do meu braço robótico por sobre a caixa registradora da barraquinha. Os dois pilas foram descontados e eu segui meu caminho pela calçada, levando o café que quase esquecera da existência durante meu devaneio.

O som de vozes e melodias brigavam no ar. Eram vendedores de peças vindas do mercado negro disputando com pastores que proclamavam contra a adoração aos andróides. Acima de tudo isso as propagandas do mais novo single da ídolo mais popular existente sobrepujava qualquer contestação estúpida do pastor e faziam as peças roubadas parecessem grotestas perto da perfeição da cantora ruiva de pele perfeita, membros e dorso finos e inacreditáveis olhos azuis brilhantes.

Azuki. Ela era mesmo incrível.

Um alerta de chamada me chamou atenção. Levei a mão à pequena peça aderida do lado direito do meu rosto, ao redor da orelha e uma pequena tela surgiu pairando no ar, no canto da minha visão. A nitidez da córnea eletrônica superava em centenas de vezes a orgânica com a qual havia nascido:

― Machado! Tenho um caso para você. ― disse um homem negro de rosto largo e olhos amarelados cintilantes. O cenário atrás dele era o da sala abarrotada de velharias da delegacia do Segundo Distrito.

― Entendido, Costa. Qual é o esquema? ― parei a caminhada. Meu sobretudo pardo desgastado balançou contra minhas pernas quando uma moto anti-gravidade passou zunindo por mim, cortando pela avenida estreita.

― É grande. O assassinato de um dos grandões da LiarSystems. O vice-presidente de comunicação e Ministro do Comércio Exterior. ― respondeu o delegado, com expressão fechada.

Assoviei e tomei todo o café amargo de um gole:

― Isso não parece uma boa. ― falei, largando o copo de isopor no chão imundo. ― Tem que ser eu?

― O Presidente Cox foi claro quando entrou em contato. ― falou Costa. ― Ele confia em você por tudo o que rolou na vez da invasão.

Que beleza. E eu só pensando na alegria de ser meu último dia de trabalho antes de uma folga de duas semanas:

― Saquei. Só manda os dados que eu tô à caminho. ― disse. Encerrei a chamada.

Um grupo de crianças passou correndo, todas vestindo capas amarelas com capuzes. Nunca se sabia quando iria chover ácido e a pele delas era natural demais para os efeitos corrosivos. Cantavam o single de Azuki com entusiasmo, despertando a irá do pastor de rua. Porém era a voz da ídolo, não do velho roufenho que ganhava os ares da avenida.

A sede da LiarSystems ficava no Primeiro Distrito. Havia uma burocracia enorme para chegar ao lugar. Era sempre a mesma tortura: sair do metrô, passar por três revistas e verificações de dados para só então sair em um ambiente totalmente diferente do caos do restante da Cidade.

Os prédios eram esparsados e baixos, com fachadas recobertas de vidros que refletiam a claridade do dia. Não dava pra ver o céu ali, entretando era muito claro. Tudo era coberto por uma cúpula que prevenia a chegada da chuva ácida até o solo. Ainda assim, a abobada cinzenta deixava a claridade cinzenta natural do lado de for a entrar. O ar, por outro lado, tinha um cheiro de conservaççao química quase agressivo para quem vivia nas ruas sujas do Segundo Distrito.

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