Livros e Baratas

51 1 0
                                    

Capitulo II

A chuva estava prevista para terminar às quinze horas, então ela teria que esperar cinco minutos ainda. Podia chamar o táxi, mas gostava de ver a precisão do controle climático. Exatamente no horário previsto a chuva parou e magicamente as nuvens começaram a desaparecer dando lugar ao sol. Toda essa tecnologia fazia dos homens quase deuses. Quase? Não. Em seu mundo os homens eram deuses! Deuses imperfeitos, deuses das máquinas, deuses artificiais, mas ainda assim deuses. Saiu de seu devaneio e chamou o táxi que chegou em poucos segundos. Eram milhões deles espalhados por toda a megalópole, uma extensão urbana que cobria todo o continente. Uma cidade de proporções inimagináveis com prédios gigantescos e lindamente construídos. Cada edifício uma arcologia, um universo, com toda sua complexidade contida numa única construção de beleza arquitetônica incomparável. E ela ainda estava impressionada com algo tão prosaico quanto controle climático.
O táxi, com uma indiferença que lhe soou grosseira, perguntou o endereço. Alguns modelos mais antigos eram assim mesmo. Rudes. Ela poderia escolher outras personalidades, mas não viu necessidade. Informou o endereço e recostou-se confortavelmente. Apesar da inteligência artificial não parecer das mais agradáveis, o táxi em si era muito confortável e limpo.
Chegou a seu destino em poucos minutos, um dos gigantescos arranha-céus que sumiam entre as nuvens.
Dentro dos edifícios mais novos o sistema de transporte dominante era algo muito parecido com os antigos metrôs do século vinte. Era interessante porque havia mais contato com outras pessoas. Ela esperava sinceramente que essa tendência se popularizasse. As pessoas precisavam de mais calor humano, mesmo que fosse involuntário. Esbarrões podiam ser ótimas desculpas para se iniciar uma conversa. Algo fora das redes, algo menos impessoal, menos artificial, menos virtual.
Ficou feliz em ver centenas de pessoas na estação que a levaria ao seu destino, mas rapidamente percebeu que praticamente todas elas estavam conectadas à rede.
Zumbis.
Zumbis tecnológicos que estavam fisicamente ali, mas que haviam mandado suas mentes voluntariamente para outros lugares.
Entrou no vagão, tão limpo e confortável quanto o táxi, mas bem mais educado, e não teve dificuldades em encontrar um lugar para sentar-se.
Olhou em volta desanimada. Praticamente todas as pessoas estavam entretidas em suas viagens pela rede, com seus olhares vazios, quase como se estivessem enfeitiçados. Eram deuses sim, mas deuses escravos de seus servos. Deus criou o homem, o homem criou a máquina e a máquina aprisionou o homem. Bem justo pensou ela, apesar de triste e com certo ar patético em todo esse comportamento.
Olhou para fora e percebeu que o trem já havia saído. Nenhum som. Nenhuma trepidação. O movimento só era percebido se alguém olhasse pelas janelas e ninguém nunca olhava. Pensou na inutilidade das janelas naqueles vagões e em como isso era deprimente.
Por um momento ficou tentada em se conectar também e então pensou na profunda hipocrisia da parte dela. Lembrou-se que a viagem na arcologia seria mais demorada do que a do táxi, já que seu destino estava em um dos últimos andares. E também havia as paradas. Decidiu não se conectar.
Ia ser uma viagem bem chata, pensou ela, mas então algo no fundo do vagão chamou sua atenção. Um rapaz estava tão concentrado em algo fora dali como todas as outras pessoas, mas fazia isso de forma diferente.
"Não pode ser." Ela sussurrou.
Tomou coragem, levantou-se e caminhou até o fundo do vagão. Estava decidida a conversar com aquele rapaz tão excêntrico. Afinal, aquilo em suas mãos não era algo que se via todos os dias.
"Ah, boa tarde."
"Boa tarde." Respondeu o rapaz um tanto surpreso.
"Isso é um livro? Digo, um livro mesmo, de... Como se diz?"
"Papel? Sim, é um livro mesmo, de papel." Respondeu com um sorriso.
"Posso ver?"
"Claro. Só não tire da pág..."
Antes que ele pudesse terminar a frase ela havia fechado o livro e admirava a capa.
"É lindo disse ela. E está em ótimo estado."
"Tenho centenas deles. A maioria, é claro, são reproduções. Encomendas. Escolho o titulo e um artesão os constrói para mim, como eram feitos no século dezenove e parte do século vinte."
"Devem ser caríssimos!"
"Os originais sim. As reproduções nem tanto. Alguns créditos."
Ela olhou novamente a capa. Havia um desenho de uma mulher e algo parecido com um inseto.
"'A Paixão Segundo G.H.', é uma história de amor?"
"Não, eu não diria isso."
"Clarice Lispector." Sussurrou ela.
"Olhe na orelha."
"Como disse?"
Ele sorriu e gentilmente pegou o livro, mostrando a foto da autora.
"Ela é linda! Mas me parece triste."
"Pois é. Todas as fotos delas são assim. Um olhar inteligente, triste e misterioso ao mesmo tempo." Disse ele devolvendo-lhe o livro.
Ela o examinou , como se procurasse algo.
"Onde se acessa o capitulo que você estava lendo?"
Com um sorriso ele mostrou em sua mão uma pequena tira de papel com os dizeres "eu amo ler". Levou alguns segundos para ela perceber a função daquele curioso objeto.
"Apresento-lhe o marcador páginas." Disse ele sorrindo
"Desculpe! Eu, eu não sabia..."
"Não se preocupe. Tome. Um presente." Disse ele colocando o marcador aleatoriamente entre as páginas do livro que ainda estava nas mãos dela.
"Não! Disse ela. Não posso aceitar. São muito caros."
"É uma reprodução. Por favor, aceite. Faria-me feliz."
Ela segurou o livro agradecida e voltou a olhar a capa.
"É um inseto?"
"Uma barata."
"Barata?"
"Estão extintas."
"Ah...Que pena."
Ele sorriu.
"Eu desço aqui." Disse ela.
"Foi um prazer. Aproveite bem o livro."
"Irei."
Ela pensou em perguntar o seu nome, mas desistiu. Desceu em sua estação e voltou a olhar para a capa com a mulher e o inseto com nome engraçado. Estava empolgada para ler. Mas antes tinha algo que deveria fazer e isso em parte a entristeceu. Será que aquela manifestação de civilidade e desprendimento seria capaz de fazê--la mudar de idéia? Não. - disse em voz baixa - Não seria.
Colocou o livro na bolsa e subiu as escadas de dois em dois degraus.
Ela nunca iria ler aquele livro, pois antes do fim do dia estaria morta.

O Deus da MáquinaOnde histórias criam vida. Descubra agora