A DESOLAÇÃO

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Mais um dia miserável nesse confinamento. Mais um dia sob essa maldita opressão que enerva, aprisiona os sentidos. Olhar para o céu por frestas no teto, ouvir o uivo do vento e o farfalhar das folhas. Não me lembro da última vez que senti o sol queimando minha pele, em uma tranquila caminhada pela estrada principal até o rio, mas lembro da sensação. Por que essa floresta infame que nos rodeia, com sua névoa densa e constante, abriga tanto mal?

Tanto tempo vivendo como animais encurralados, não sabemos de nada fora do vilarejo. Mensageiros, comerciantes, artistas, comitivas, até animais abandonaram esse lado da floresta. Estamos isolados do mundo, nosso sofrimento só é sentido por nós mesmos. Amigos, esposas, filhos, pais, tios, primos, todo mundo teve alguém próximo que sucumbiu ao ataque da besta maligna. Mas nem sempre foi assim, apesar de hoje sermos apenas um grupo miserável de pessoas, tivemos nossos dias de glória e fartura. Esses dias nos foram tomados sem explicação por uma criatura impiedosa, que transformou nosso destino em nada mais que agonia. O nosso flagelo, uma maldição que nos varreu do mapa do império de Ouro Verde.

Reduzidos a quase nada, fortalecemos o celeiro central. Alguns apêndices foram construídos para servir de alojamentos. Tudo foi reforçado, a madeira e as pedras das casas mais próximas foram usadas, já que se aventurar pela floresta atrás de matéria prima seria suicídio. Muitos sucumbiram a um destino cruel na construção. Distraídos, se viram atacados pela criatura, no entanto seus sacrifícios foram lembrados, suas mortes fizeram parte da única atitude que o vilarejo tomou contra a besta, se enclausurar.

Alguns mais corajosos até tentaram caçar a criatura, mas sem sucesso. Era possível ouvir os gritos do grupo de lenhadores que, munidos de seus machados, arriscaram e perderam suas vidas às margens da floresta.

Pouco se sabe sobre esse demônio, superstições apenas. Lutar contra o desconhecido se torna inviável e, quando não se tem recursos e é abandonado por seus conterrâneos, a única coisa a fazer é se esconder e esperar que um dia a sorte mude, a morte deixe de espreitar por nossos caminhos, seja nos devastando de uma vez, acabando com essa agonia, ou nos deixando viver para um dia prosperamos outra vez.

***

Meu nome é Slon, sou um covarde, sempre me esquivei de brigas. As únicas batalhas que me atraiam eram as dos livros de aventuras que costumava ler.

Eu viajava constantemente à Cidade Verde, o centro vivo do comércio e diversão do império. O castelo assomando a população sobre o majestoso Monte Dourado, com suas dez torres com mais de 15 metros de altura, coloridas por trepadeiras até quase as ameias. Telhados vermelhos, janelas de vidraçaria trabalhada em mosaicos que brilhavam à luz do sol, um enorme portão de carvalho, reforçado com ferro fundido e placas de cobre. Poucas imagens eram mais hipnotizantes e maravilhosas que o sol se pondo e iluminando o castelo, misturando o verde nas paredes com o alaranjado flamejante da luz poente, nem mesmo o turbilhão frenético de pessoas da cidade na base da montanha era capaz de ofuscar tal contemplação.

Eu levava, periodicamente o carregamento de morangos, produzidos de forma sublime por meus pais... pobres papai e mamãe. Foram reduzidos a restos mutilados; depois de terem sido devorados pela besta, na verdade os primeiros a serem atacados, pelo que se tem registro. Que saudade do cheiro doce daqueles morangos, os melhores da região, era o que diziam. Me mandavam com uma carga com os mais bonitos e apetitosos para o castelo e uma segunda seleção para vendedores no mercado de Cidade Verde, toda semana.

No dia de suas mortes eu estava de cama, alguma gripe comum. Me lembro de ficar chateado por não ir. Meus pais iriam receber mais presentes da família real e, diziam os boatos, que receberiam das próprias mãos do Rei Dorian IV.

A FLORESTA ENEVOADAOnde as histórias ganham vida. Descobre agora