Toda Vez

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Era uma vez uma vez sem era, um sonho incompleto perdido no tempo entre o real e imaginário.

Era uma vez palavras não ditas, verdades escondidas e mentiras espelhadas em um grande sorriso.

Era uma vez o silêncio molhado por lágrimas brilhando no escuro da noite, prensadas para fora por pensamentos pesados.

Era uma vez...

O "como?". A questão que resumia o turbilhão de pensamentos que sempre estava lá. Como tudo podia dar tão certo para os outros? Como eles podiam conseguir realizar aquele seu sonho oculto sem a menor dificuldade? Era tão patético...

Em uma semana você assistia relações serem construídas, relações que não teria nem em uma década. Pessoas tornavam-se importantes uma para as outras, amavam e eram amadas como iguais. Utópico, não? Sua utopia. Sentir-se valorizado, seguro, importante. Como é saber que a sua existência é importante para a vida de alguém? Como é saber que alguém sabe que você está ali?

Ah, mas eles notariam se você desaparecesse. Por que durante toda a sua vida você esteve lá para todos com quem você se importava, mesmo que eles. Porque você já está lá. Ninguém deseja aquilo que já tem, ninguém liga para o que sabe que sempre estará lá. É só fingir ouvir, falsificar um sorriso, fingir interesse. Ou nem isso, porque não importa. Você estará lá. Eles podem ignorar, só falar o que interessa, e você estará lá.

E você vai sorrir e tentar ajudar, porque é para isso que você serve. Você vai sorrir quando as coisas pequenas quebrarem o seu coração, porque você é tudo menos fraco. Porque você nunca vai começar uma briga, nunca vai falar as verdades de sua mente. Você vai sorrir porque sorrir os mantêm por perto por mais tempo e a sua mente masoquista gosta de fingir que a existência deles te faz menos solitário.

Como é viver? Rir de verdade, sem mágoas. Como é ser um melhor amigo? Um amor? Uma peça única que não mais um... Só mais um. Você queria muito isso, queria não se sentir tão deslocado. Olhar para pessoas e considera-las iguais, falar e não só ouvir. Gritar sem sentir medo, conversar sem colocar filtros. Chorar no ombro de alguém e não confiar apenas na escuridão como companhia.

Não mentir. O quão bom deve ser não mentir?

Mas nada te assusta mais.

Como é ser você mesmo? Sequer sabe, ou já viveu tanto tempo criando máscaras e mantendo silêncio que chegou a esquecer? Se algum dia o caminho das palavras esteve claro, ele não é mais. Você não sabe mais como interagir, o que ou não fazer e, não, ser você mesmo não é uma opção. Você mesmo não existe, está enterrado onde o sol nunca irá alcançar e, mesmo que você não se lembre de como ele te queimou, você nunca mais deixará a luz entrar.

Trancado dentro de si mesmo e com a chave devidamente destruída, você olha pela janela. A altura assusta e agrada, é delicioso poder ver tudo. O mar de desconhecidos e conhecidos que fazem a sociedade funcionar como engrenagens de um relógio, todos facilmente substituíveis para o mundo e incrivelmente únicos para as pessoas que também eram únicas para eles. Você deseja pular, um impulso forte como a própria gravidade.

Não morrer, nunca morrer. Pular e voar, flutuar acima de tudo e de todos, inexistir. Você deseja a liberdade das próprias regras e do próprio mundo, a definição entre o estar e o não estar porque você já não consegue mais lidar com o limbo da própria não existência que existe e recebe marcas sem marcar.

Mas você não sabe voar e os caminhos para a liberdade são estreitos e desconhecidos. Tornar-se como eles já deixou de ser uma opção, você não consegue vencer a sua própria inabilidade inexplicável. A sua encruzilhada torna-se um beco sem saída, um caminho único para lugar nenhum. Porque a única liberdade é a liberdade de laços, o único conforto é a verdadeira solidão. Você não precisa falar, só precisa estar.

E o telefone vai vibrar mais uma vez e você vai responder com toda a sua atenção mesmo sem saber quais palavras usar. E você vai encontra-los e vai sorrir e gargalhar e falar o que estiver na ponta de sua língua, mas nunca no fundo de sua alma. E você vai deitar de noite, fechar os olhos e deixar de existir por alguns instantes em uma noite sem sonho, uma morte momentânea até o dia seguinte, até você voltar a fingir.

E você viverá naquela vez sem era, a que é sem nunca ser. Vai trancar o cofre de sua alma cada vez com mais cadeados, escondê-lo sempre que doer como se isso fosse resolver o problema. E você vai caminhar pelo seu limbo com um sorriso no rosto e bolhas nos pés.

Era uma vezWhere stories live. Discover now