Capítulo 3 - Não me DESCUBRA

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Sentia nojo de si por completo, a maquiagem agora incomodava na sua face por conta do suor e por isso ele pediu um retoque. Parecia tão boçal, não se reconhecia — estava tão imundo. Queria reclamar da vida, mas era privilegiado demais para isso. O cachê era bom, a revista de moda o fotografava desde pequeno e aquela empresa era sua cliente fiel — tudo estava nos eixos, menos suas luvas. Seu adorável par de luvas, sua marca registrada, não estava com ele. Respirou. Inspirou. Precisava se concentrar no ensaio agora. Fez algumas poses junto à sua parceira, uma loira alta e bonita, filha de algum magnata. Até que o inferno acabou e recebeu a liberação para se dirigir ao carro.

Entrou no veículo ofegante, como quem acabara de percorrer uma maratona, colocou um par de luvas descartáveis — não iria sujar as suas luvas com as suas mãos. Deixou o peso sair de seus pulmões e o ar condicionado secar sua face. Ainda no carro, passou o demaquilante duas vezes e olhou o relógio sete. Seriam quinze minutos até chegar em casa e poder lavar sua cara com seu sabonete líquido. O caminho foi rápido, a música o distraía de seus pensamentos imundos. A sujeira era a maior inimiga do jovem Sales e não via a hora de se limpar completamente.

Chegou em casa e suspirou de alívio, finalmente, pensou. Retirou os sapatos como sempre fazia, não importando o quão cansado estivesse. Não correria o risco de sujar o imóvel, era ele quem limpava o apartamento, no final das contas. Morava em uma vila, com residências bonitas e arrumadas, contudo, certamente, era a dele a mais limpa e a mais branca. Pegou a água sanitária e engoliu seco, preparando-se para o que viria a seguir, colocou as mãos sem olhar — estavam imundas — e sentiu a água corroer seus dedos. Quis chorar, mas se segurou, mordendo os lábios. As lágrimas escaparam sem sua permissão e só então ele tirou as duas mãos de dentro do líquido ardente. Estava ofegante, é válido ressaltar, mas sentia que a limpeza estava completa. Suas mãos agora estavam em carne viva, mas estavam limpas. Ele permitiu que elas limpassem suas lágrimas e viu os resquícios da base se misturar com o líquido, pensou em como seria colocar sua cara naquela solução. Sentia vontade de fazer aquilo, sentia vontade de se limpar, mas se controlava. Precisava se controlar.

Colocou os dedos debaixo d'água e sentiu o líquido gelado refrescar os pequenos cortes que abriam em suas dobras. Aquilo era mais que ardor, psicologicamente, era um alívio. Por mais que o vermelho dominasse suas mãos em alguns dias, sabia que pelo menos elas estavam limpas — e lhe davam mais um motivo para usar luvas. Ao respirar, achou ter enxergado os germes que escapavam de sua boca e isso o enlouqueceu. Não havia comido nada além de uma maçã no café da manhã e seu estômago roncava, olhou ao relógio, duas horas da tarde. Deu-se ao luxo de comer o que encontrara na geladeira, junto com um pequeno tablete de chocolate, o qual colocou debaixo da língua e o sentiu derreter. Não deveria sair da dieta, mas precisava de energia para correr na esteira e o chocolate lhe entregava tudo aquilo.

Lembrou-se da mãe, quando mais novo, fazendo seus ovos de páscoa, e sorriu. Tudo fora bom, em algum dia no passado distante.

Andou na esteira por exatas duas horas e doze minutos. Suas pernas doíam, latejavam e ele as via tremerem, todavia não se assustava. Tomou um banho com luvas, pois suas mãos ainda ardiam ao tocar na esponja e esfregá-la no corpo. Escovou os dentes exatas três vezes, dessa vez sem o Hipoclorito de Sódio — achou que merecia um descanso, apesar de saber que os germes e as caries adorariam este. Finalmente, jogou-se na cama de lençóis brancos e perfeitamente alinhados, não antes de conferir oito vezes se todas as portas e janelas estavam fechadas. Sua mente doía, eram muitos números, mas precisava de todos e, por isso, os anotava em sua caderneta no celular. Precisava se organizar, sem organização, tudo iria ralo abaixo.

Dormiu, já cansado. Em seus sonhos, viu o mundo limpo em que um dia viveria. Quando este dia chegasse, não realizaria seus exercícios como sempre fazia ou limparia sua casa como era de costume, não haveria vontade de queimar sua própria pele. Em seus sonhos a lembrança da mãe ainda existia, em conjunto com a vergonha que ela sentiria se o visse naquele estado, incapaz de coexistir consigo mesmo.

***

Tomou banho duas vezes a mais ao acordar, por não ter ensaio passou o dia em casa — deitado em seu sofá branco. Até que pegou seu celular e sentiu sua cabeça pesar, a luz e a falta de alimento o deixavam tonto — só havia comido o iogurte pela manhã e já era de noite —, contudo, permaneceu firme e forte. Ninguém o amará se não for bonito, as palavras de seu pai o impulsionavam a continuar.

Quando seu telefone vibrou, sentiu um misto de sentimentos — ansiedade e repulsa, tudo batido no gigantesco liquidificador que era seu emocional. Odiou o celular ao verificar a mensagem, era Marina — sua estilista — e pensou algumas vezes antes de abrir.

Abriu, não porque amava o trabalho da garota e sim porque a amava — e a odiava, pois era incapaz de acreditar que nutria apenas sentimentos positivos dentro de si.

Verificou a mensagem algumas vezes: preciso que venha aqui em casa para experimentar algumas roupas, seria possível? Dizia a mesma. Não queria, apesar de serem próximos, não gostava de ir na casa de outras pessoas — Marina, mais do que ninguém, sabia disso. Porém, abriu uma exceção ao lembrar-se das roupas da menina, eram realmente fabulosas. A garota era uma das poucas pessoas que não o considerava insuportável de se trabalhar, tentando dar o máximo para manter seu posto — era uma das poucas pessoas com quem suportava trabalhar, apesar de que, na maioria do tempo, não suportava seus métodos impuros de realizar diversos feitos, como a mania de pentear o cabelo apressadamente ou de não engomar as roupas direito.

Vestiu uma blusa preta, uma das poucas que possuía, porém, a engomou 4 vezes antes. Penteou os cabelos diversas vezes — cinco ou seis, talvez — até que finalmente se sentiu confortável com seu reflexo e entrou em seu carro branco, não antes de vestir suas luvas de igual cor. Depois de muito respirar — pois estava nervoso por ter que sair de sua zona de conforto —, se dirigiu à casa da moça, relembrando de todos os motivos que tornavam a residência rosa mais segura que a sua. Para criar coragem, o modelo pensou em como não teria que se preocupar com a limpeza de sua casa por pessoas estranhas terem pisados nela e isso o incentivou a seguir em frente, tal qual as palavras de seu pai o faziam.

Não me TOC [COMPLETO]Where stories live. Discover now