A Bailarina Torta

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Querida Laura,

Se você recebeu esta carta significa que já está alfabetizada. Você pode não se lembrar de mim, mas te conheci quando ainda era um bebê. Nessa época seus pais me visitavam com frequência e costumavam pedir conselhos sobre formas de te ajudar a crescer feliz num mundo cinza como este. Espero ter ajudado naquela época, e espero poder ajudá-la agora.

Saiba, antes de qualquer coisa, que sempre fui encantada por contos de Natal. E é exatamente um deles que gostaria de compartilhar com você.

Aconteceu há muitos anos atrás. Muitos anos antes de você ou até mesmo seus pais nascerem. Foi em uma época em que os brinquedos ainda podiam se comunicar. Sim, eles tinham vontade própria e sonhos.

Era véspera de Natal, e como esperado, a neve presenteava os moradores da pequena cidade de São Vicente com um belo cenário. Crianças corriam para todos os lados brincando com a neve, povoando o ambiente com suas fantasias. Uns queriam ser soldadinhos de chumbo, outros marinheiros, outros ainda maquinistas de trem, e tinha aqueles que ousavam desejar ser o príncipe Quebra-Nozes – exatamente como na história. Uma garotinha sonhava em ser bailarina.

A bailarina torta rodopiava e caía. Caía, levantava e tentava novamente inconsciente do motivo de seu desequilíbrio.

Suas companheiras rodopiavam lindamente, em perfeita harmonia com o suave toque musical. Rodopiavam e riam das constantes e fracassadas tentativas da bailarina torta. Ao contrário desta, estavam conscientes do motivo de seu desequilíbrio. O pequenino pé de porcelana estava quebrado e desnivelava o outro fazendo com que perdesse o equilíbrio nos giros. A bailarina torta via os rostos sorridentes das companheiras e percebia ali incentivo para não desistir. E não desistia. Girava, caía, caía e girava.

A loja do senhor Claudio estava apinhada de clientes. A garotinha que sonhava em dançar observava do lado de fora da vitrine as caixinhas de música e as delicadas bailarinas. Observava em especial a obstinada bailarina torta.

— Olívia, já escolheu o seu presente de Natal?

A mãe, uma elegante, porém muito séria dama, a conduziu para dentro da loja.

— Sim, quero esta. — Afirmou com convicção apontando o dedinho para seu brinquedo escolhido.

— Ora francamente, Olívia, porque escolheu esse brinquedo quebrado?

— A senhora não sabe, mamãe? A Srta. Angelique falou que existe beleza na fraqueza. Ela disse que quando estamos fracos, quebrados, é que podemos descobrir nossa verdadeira força. — Os imensos olhos negros exibiam pequenos pontos brilhantes a semelhança de uma noite estrelada. — Mamãe, porque a senhora está chorando?

— Não é nada querida. A sua professora está coberta de razão. — A distinta dama enxugou os olhos com as costas das mãos e se encaminhou até o balcão do caixa. — A minha filha quer levar este brinquedo.

A atendente olhou confusa da criança para a mulher, e desta para o brinquedo.

— Mas senhora, este produto está quebrado. Nem havíamos percebido antes, e por isso peço sinceras desculpas. Porque não leva aquele outro ali que está perfeito? — Indicou a bailarina do centro da vitrine.

— Este é especial. — respondeu dando uma piscadinha para a filha.

Após pagar pelo presente, tendo insistido com a vendedora de que não precisava dar desconto pelo brinquedo quebrado, a nobre dama conduziu a cadeira de rodas da feliz futura bailarina para fora da loja.

A bailarina quebrada não aprendeu a dançar sem cair. No entanto era feliz por poder dançar do seu jeito quebrado e fazer uma criança feliz.

A pequena Olivia, inspirada pela bailarina torta, ano após ano driblou as dificuldades de sua deficiência nas pernas e junto com sua professora de dança – Srta. Angelique – desenvolveu um jeito próprio de dançar. Montaram um grupo de dança – Bailarina Quebrada – e conheceram o mundo. E o mundo os conheceu. O Bailarina Quebrada se tornou um projeto mundialmente famoso e realizou muitos sonhos.

Porque a magia do Natal pode se tornar real. Basta acreditar e lutar.

Sabe, Laura, quando seus pais conversavam comigo, eles se preocupavam com o fato de você não reagir aos sons. E eu dizia que estava tudo bem. Você jamais seria um brinquedo quebrado. Brinquedos quebrados são todas as pessoas que não se esforçam para entender que não existe um modo padrão de viver e ser feliz. Cada um de nós descobrimos o nosso próprio jeito. E você descobrirá o seu.

Então lhe faço essas perguntas: Minha Pequena Laura, qual o seu sonho? Qual o seu próprio jeito de realizá-lo?

Oh! Como sou distraída! Meus pais sempre me repreendiam por não me prender muito a formalidades. Espero que possa perdoar uma velha bailarina torta por ter se esquecido dessa norma social que pede apresentações. Sou sua tia-avó. Já não tenho mais a saúde e o vigor da minha juventude, e sinto que se aproxima o tempo de mudar de mundo. E antes que isso aconteça, gostaria de deixar para você, acompanhado desta carta, meu bem mais precioso: a bailarina torta. Ela está pronta para dedicar a você todo o amor e inspiração que dedicou a mim e a todos os que cruzaram seu caminho.

Cuide bem dela. Cuide bem de você.

Não gosto de despedidas, jamais gostei, então encerro essa carta com um desejo.

O que posso desejar a você? O mesmo que desejei e conquistei para mim: Uma vida intensa e cheia de fantásticas aventuras.

Com amor,

Olívia.

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