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O Exorcista
flácidas, escrevia com cuidado, à escrivaninha, a última entrada
no registro. Parou um instante levantando o olhar para o amigo,
ao mesmo tempo em que mergulhava o aparo da caneta no
tinteiro. O homem de cáqui parecia absorvido nos seus
pensamentos. Junto de uma mesa, mãos nos bolsos, olhava
fixamente uma réstia do passado, ressequida e etiquetada. O
conservador o observou, curioso e imóvel, depois, continuou
escrevendo, com letra firme, esmerada e pequena. Por fim deu um
suspiro e pousou a caneta, ao ver as horas. O trem de Bagdá
partia às oito. Riscou a página e ofereceu chá. O homem de cáqui
balançou a cabeça, de olhos fixos num objeto que estava em cima
da mesa. O árabe o olhava, vagamente perturbado. O que pairava
no ar? Havia algo no ar. Levantando-se, aproximou-se. Sentiu
umas vagas picadas na nuca quando o amigo, movendo-se por
fim, apanhou um amuleto e o segurou pensativo nas mãos. Era
uma cabeça de pedra verde do demônio Pazuzu, personificação do
vento de sudoeste. Tinha poder sobre a doença e a moléstia. A
cabeça estava furada. O dono do amuleto usara-o para se proteger.
— O mal contra o mal — murmurou o conservador,
abanando-se vagarosamente com uma revista científica
francesa que tinha uma mancha de azeite na capa feita pelo
contato de um dedo. O amigo não se mexeu nem fez
comentários.
— O que há com você?
Não obteve resposta.
— Padre?!
No entanto, o homem de cáqui pareceu não ouvi-lo, absorvido
pelo amuleto, o último dos seus achados. Um segundo depois o
pousou e olhou interrogativamente o árabe. Tinha dito alguma
coisa?
— Nada.
Murmuraram despedidas.
À porta, o conservador agarrou a mão do velho com inusitada
firmeza.
— Meu coração tem um desejo, padre: que você não fosse
embora.
O amigo respondeu-lhe brandamente, falando de chá, do tempo,
de coisas a fazer.
— Não, não, não; queria dizer, para casa.
O homem de cáqui fixou o olhar numa migalha de grão-de-bico
cozido que se aninhara no canto da boca do árabe; todavia, o seu
olhar continuou distante.

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