Capítulo X

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No outro dia a casa do Miranda estava em preparos de festa. Lia-se no "Jornal do Comércio" que Sua Excelência fora agraciado pelo governo português com o titulo de Barão do Freixal; e como os seus amigos se achassem prevenidos para ir cumprimentá-lo no domingo, o negociante dispunha-se a recebê-los condignamente.

Do cortiço, onde esta novidade causou sensação, via-se nas janelas do sobrado, abertas de par em par, surgir de vez em quando Leonor ou Isaura, a sacudirem tapetes e capachos, batendo-lhes em cima com um pau, os olhos fechados, a cabeça torcida para dentro por causa da poeira que a cada pancada se levantava, como fumaça de um tiro de peça. Chamaram-se novos criados para aqueles dias. No salão da frente, pretos lavavam o soalho, e na cozinha havia rebuliço. Dona Estela, de penteador de cambraia enfeitado de laços cor-de-rosa, era lobrigada de relance, ora de um lado, ora de outro, a dar as suas ordens, abanando-se com um grande leque; ou aparecia no patamar da escada do fundo, preocupada em soerguer as saias contra as águas sujas da lavagem, que escorriam para o quintal. Zulmira também ia e vinha, com a sua palidez fria e úmida de menina sem sangue. Henrique, de paletó branco, ajudava o Botelho nos arranjos da casa e, de instante a instante, chegava à janela, para namoriscar Pombinha, que fingia não dar por isso, toda embebida na sua costura, à porta do número 15, numa cadeira de vime, uma perna dobrada sobre a outra, mostrando a meia de seda azul e um sapatinho preto de entrada baixa; só de longo em longo espaço, ela desviava os olhos do serviço e erguia-os para o sobrado. Entretanto, a figura gorda e encanecida do novo Barão, sobre-casacado, com o chapéu alto derreado para trás na cabeça e sem largar o guarda-chuva, entrava da rua e atravessava a sala de jantar, seguia até a despensa, diligente esbaforido, indagando se já tinha vindo isto e mais aquilo, provando dos vinhos que chegavam em garrafões, examinando tudo, voltando-se para a direita e para a esquerda, dando ordens, ralhando, exigindo atividade, e depois tornava a sair, sempre apressado, e metia-se no carro que o esperava à porta da rua.

— Toca! toca! Vamos ver se o fogueteiro aprontou os fogos!

E viam-se chegar, quase sem intermitência, homens carregados de gigos de champanha, caixas de Porto e Bordéus, barricas de cerveja, cestos e cestos de mantimentos, latas e latas de conserva; e outros traziam perus e leitões, canastras d'ovos, quartos de carneiro e de porco. E as janelas do sobrado iam-se enchendo de compoteiras de doce ainda quente, saído do fogo, e travessões, de barro e de ferro, com grandes peças de carne em vinha d'alhos, prontos para entrar no forno. À porta da cozinha penduraram pelo pescoço um cabrito esfolado, que tinha as pernas abertas, lembrando sinistramente uma criança a quem enforcassem depois de tirar-lhe a pele.

Todavia, cá embaixo, um caso palpitante agitava a estalagem: Domingos, o sedutor da Florinda, desaparecera durante a noite e um novo caixeiro o substituía ao balcão.

O vendeiro retorquia atravessado a quem lhe perguntava pelo evadido:

— Sei cá! Creio que não podia trazê-lo pendurado ao pescoço!...

— Mas você disse que respondia por ele! repontou Marciana, que parecia ter envelhecido dez anos naquelas últimas vinte e quatro horas.

— De acordo, mas o tratante cegou-me! Que havemos de fazer?... É ter paciência!

— Pois então ande com o dote!

— Que dote? Você está bêbeda?

— Bêbeda, hein? Ah, corja! tão bom é um como o outro! Mas eu hei de mostrar!

— Ora, não me amole!

E João Romão virou-lhe as costas, para falar à Bertoleza que se chegara.

— Deixa estar, malvado, que Deus é quem há de punir por mim e por minha filha! exclamou a desgraçada.

Mas o vendeiro afastou-se, indiferente às frases que uma ou outra lavadeira imprecava contra ele. Elas, porém, já se não mostravam tão indignadas como na véspera; uma só noite rolada por cima do escândalo bastava para tirar-lhe o mérito de novidade.

O Cortiço (1890)Where stories live. Discover now