Surprise

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Helston, Inglaterra, Séc. XIX
Scarlett Mansion (Mansão Escarlate)

- Oh, minha doce criança, não há necessidade alguma de se sentir ansiosa sobre o que iremos tratar. Falaremos sobre isso mais tarde no meu escritório, sim? Por hora vamos somente usufruir de nossa festa. - e assim o brilho do inferno reluziu sobre sua íris e me dispensou com um gesto suave das mãos, como quem avisa aos empregados à hora de se retirar de um aposento.
Respirei fundo e sorri da forma mais doce que pude para não demonstrar meu desespero, muito embora eu soubesse que ela, por dentro, estava se reverberando por saber o imenso pavor que sinto ao simplesmente estar no mesmo ambiente em que sua figura imponente se encontra.
Olhei para o lado e pisquei atônita ao notar, mesmo que brevemente, um sorriso de canto do Mr. Brown, quase imperceptível, o que me fez pensar se havia sido mesmo real ou se era fruto da minha imaginação por achá-lo um homem deveras atraente. Optei por pensar que era apenas fruto da minha imaginação estúpida e nada conveniente.
Ao lado dele Abigail estava em choque e parecia um pequeno animal indefeso que sabe que vai morrer em breve e então algo no meu peito se acendeu e esqueci-me momentaneamente que há poucos minutos atrás eu nem sequer ligara para como ela se sentia, e agi por instinto ou impulso, não saberia dizer, ao proferir as palavras que dariam início ao pior apego que eu poderia ter:
- Mamãe e Mr. Brown peço desculpas pela intromissão, mas gostaria de pedir-lhes algo, se possível, é claro. - e me curvei levemente, esperando que me deixassem falar.
- Querida, creio que eu e o- a voz venenosa de minha mãe foi interrompida pela voz quase hipnótica do Mr. Brown e ela, sem saída, ficou desgostosa por esse fato inesperado.
- Diga senhorita, o que quer de mim e da Ms. Morgan?
E então fiquei novamente e para o meu deleite, com o calafrio na espinha que subia vagarosamente por minhas costas, como uma serpente se esgueirando pelo corpo de sua vítima, na medida em que a seduzia para a morte.
Ainda assim, por mais que parecesse algo horrível, a cada vez que esse frio se fazia presente pela voz Dele, eu não me sentia assustada. Era quase como uma dor prazerosa. Uma doce e reconfortante tortura.
Ergui minha cabeça e o olhei com uma coragem que eu não sabia que possuía enquanto sorria verdadeiramente para ele, como se ele tivesse me dado um presente maravilhoso, e para não ter represálias durante a longa noite que se seguiria, pedi o mais discretamente que pude:
- Gostaria que sua adorável filha, Abigail, me acompanhasse durante a festa. Juro-lhe que a manterei bem e confortável, assim como farei o possível para que ela se divirta..
Ele sorriu e inclinou sua cabeça para o lado, como quem sabe que não pode recusar algo para alguém e como de costume nessa noite, meu peito reverberou e me senti, de certa forma, feliz. Sim, feliz. Só não sabia o motivo exato, mas de quê isso importava?
- Dou-lhe minha permissão para isso. Abigail, a obedeça. Senhorita. - e assentiu positivamente.
Me curvei em agradecimento e olhei para Abigail, estendendo minha mão direita para a mesma que sem hesitar a segurou com força e esperou que eu a guiasse pelo salão.
Senti-me mal por não ter pensado nela antes, enquanto planejava minha fuga, mas agora faria com que a noite dela, ao menos a dela, se tornasse agradável para a mesma.

Conforme íamos nos afastando de minha mãe e seu pai, me sentia um pouco mais leve e ao que parece era recíproco, já que a força dela sob minha mão diminuiu. Sorri sem mostrar os dentes e perguntei:
- Posso chamá-la de Abigail?
- É claro, senhorita Morgan. Obrigada.
- Qual o motivo de me agradecer? Ah, por favor, me chame apenas de Sienna. Não quero formalidades banais entre nós duas. O que acha?

Sorri. Ela era doce e agora parecia um pouco mais feliz, apesar de ainda parecer absorta em algo.
- Agradeço pelo simples fato de me tirar de lá. A Ms. Morgan, apesar de extremamente bela, é muito... - ela mordeu os pequenos lábios e ri, internamente, da face engraçada que ela fez, apesar de acreditar veementemente que a mesma não se deu conta disso, e continuei:
- Assustadora? - ela ruborizou- Não se sinta envergonhada com isso, Abigail. Ela é, de fato, muito assustadora. Eu também me sinto assim em relação a Ela.
- Eu só não queria que a senhorita, digo, Sienna, - ela ruborizou ainda mais- se sentisse ofendida por isso. Mas devo concordar com o que disse: a Ms. Morgan é MUITO assustadora. Vê-la com meu pai e a intimidade em que ela o trata me deixa apavorada. - ela mordeu seus pequeninos lábios novamente e me senti intrigada, apesar de não ser tola sobre esses... Assuntos. Não imagino que minha mãe queira algo sério com o Mr. Brown, ainda assim me senti incomodada.
- Como assim? - pergunto curiosa, afinal, aparentemente, meu cérebro decidiu focar no Mr. Brown e minha mãe.
- Ela vive o seduzindo e algumas vezes vi os dois entrarem no escritório de meu pai e demorarem horas e horas para saírem de lá. Não a quero como minha madrasta. Pensar nisso me deixa nervosa e preocupada.
Segundos depois ela tampou a boca e me olhou com olhos arregalados, parecidos com aqueles de quem é pego no flagra por dizerem algo que não deveria ser dito. Ri verdadeiramente disso, tanto, mas tanto, que chamei a atenção de algumas pessoas.
Me recompus pedindo desculpas e a olhei.
Ela esperou minha próxima reação e tudo que fiz foi abraçá-la.
O cabelo dela cheirava a morangos e era macio como algodão. Senti suas mãozinhas se apertarem ao redor da minha cintura e sussurrei para ela que tudo ficaria bem. Senti sua cabeça se mexer num sutil gesto positivo e assim ficamos.

Minutos ou horas depois a convidei para dançar e com graciosidade nos dirigimos para o meio do salão. Dançamos, sorrimos e nesse momento, ao menos nesse único momento, me esqueci de quem eu era.
Infelizmente momentos assim nunca duram muito.

A voz implacável de Scarlett Morgan, minha mãe, varreu como uma onda o salão e toda a atenção foi direcionada apenas para Ela. Após ver todos focarem em sua figura majestosa, sorriu como uma predadora apreciando o banquete de sangue que teria e falou:
- Meus caros senhores e senhoras, é uma honra tê-los em minha humilde mansão. Sinto por não ser uma festa tão grandiosa como as outras que eu, orgulhosamente, pude realizar, mas para recompensá-los, hoje, minha filha, minha bela criança, tocará uma música para todos nós. Sienna, querida, venha até mim.
E assim os olhares viraram-se para mim.
Inflei meus pulmões e sorri, enquanto andava e puxava gentilmente Abigail comigo, para que ela não se sentisse sozinha e para que eu tivesse minha mais nova amiga ao meu lado enquanto caminhava em direção a Ela.
Assim que cheguei lá, ela olhou com escárnio para Abigail, que se encolheu atrás de mim e disse:
- Sienna, toque com o coração, mas em hipótese alguma me envergonhe, entendeu, criança?
E assim deslizou alguns passos, me dando espaço para, enfim, respirar.
Olhei para Abigail e apesar dela ainda estar em choque, sorriu para mim.
Não soube como reagir e me sentei em frente ao piano, que eu já não tocava há muitos anos, e me perguntei se eu ainda lembrava de alguma melodia que fosse suficientemente boa para esta ocasião.
Então a figura esguia do Mr. Brown se materializou em minha mente e meus dedos começaram a se movimentar sozinhos, produzindo sons que eu nunca havia tocado antes.
Percebi que estava seguindo o conselho ou ordem, eu nunca saberia, de minha mãe e automaticamente meu peito se encheu de ar e comecei a cantarolar na medida que tocava com ainda mais fervor:
- Devagar, como as ondas e tão forte como a tempestade, seu olhar perfurou meu pobre e miserável peito. Queimou-me como uma enorme fogueira, mas eu não sinto mais dor. Onde foi que aprendi como isso funciona? Onde foi que me vi tão infeliz? Por que apareceu? -respirei e logo prossegui- Eu odeio o que me tornei e odiarei com ainda mais força o que me tornarei, mas acho que não poderia lhe odiar. O que estou fazendo? Pode, por misericórdia, me contar?
Abri meus olhos e olhei para Abigail.
- Doces olhos, tão inocentes, não percam nunca seu brilho, eu lhes imploro. Seja feliz e voe como uma águia, que enxerga tudo e não precisa de mais absolutamente nada. Seja feliz por mim e por você, doce pássaro livre. Seja quem quiser ser.
Lágrimas caíam dos meus olhos e continuei, tentando não deixar que minha voz me traísse:
- Os navios partem sem cessar, o passado vai ser esquecido e o presente também se perderá. O futuro será incerto, mas a incerteza é o melhor para te poupar. O que devo fazer agora? Como posso seguir em frente? Não sou ondas e nem tempestade, não sou um pássaro doce e inocente. Não sou nada e me afundo cada vez mais em meus pensamentos, o que devo fazer? Pode, por misericórdia, me dizer?
E assim parei.
De início houve um silêncio tenebroso e pensei que não deveria ter cantado, mas logo em seguida pessoas me elogiaram e bateram palmas.
Olhei para Ela, a pessoa que me obrigou a fazer isso, e ela parecia se divertir com minha atual aparência e situação. Abigail estava sorrindo. Mr. Brown, que estava com uma taça de vinho, sequer olhou para mim.
Levantei suavemente e me curvei para minha mãe e para os demais em agradecimento.
- Querida, creio que precisaremos conversar com o Mr. Brown agora. Aproveitem a festa, meus caros. Voltaremos em alguns instantes.
Endireitei minha postura e olhei uma última vez para Abigail, tendo a sensação de que não a veria outra vez, antes de seguir a trilha traçada pelos sapatos suntuosos de minha mãe.

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Obra em processo de registro.
Plágio é crime e não exitarei em denunciar e processar.
Espero que apreciem a leitura.

O livro está sendo revisado e algumas informações podem ter sido adicionadas e outras apenas modificadas.

Atenciosamente,

Eduarda Helena.

MaldiçãoWhere stories live. Discover now