Menos um dia igual

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Ela acordou ao primeiro raio de sol. Se é que se pode chamar aquilo de raio de sol, a luz incerta que começa a iluminar a casa timidamente às cinco da manhã.

Em sua mente ela sabia que precisava dormir mais. Ou dormir um pouco ao menos. Desde quando sofria de insônia? Não se lembrava de nenhum evento específico que tenha desencadeado esse processo. Se pudesse identificar o motivo talvez conseguisse se livrar desse problema, mas não tinha tempo para pensar nisso, muito menos dinheiro para pagar um psicólogo. Ou melhor, psicóloga. Jamais conseguiria se abrir - emocionalmente - para um homem. Afinal, o que os homens entendiam sobre a alma feminina?

Sentia saudades de tempos que nem se lembrava mais. Sentia-se velha em seus trinta e poucos anos. Todas as suas amigas se casaram, tiveram filhos, muitas preocupações as quais ela nem poderia imaginal, como insistia em repetir  Tânia, sua amiga so segundo grau, que estava entrando para a categoria de ex-amigos. Não tinham mais nada em comum.

Seus colegas de trabalho eram muito infantis para seus pouco mais de trinta anos, o que tornava a vida um pouco chata, afinal, não suportava aquele papinho adolescente de gente barbada que se recusava a sair da casa dos pais. Ela se sentiria péssima se ainda morasse com os pais. Não que se sentisse maravilhosa morando sozinha, mas ao menos não tinha que dar satisfações de sua vida sem graça a ninguém. Nem ouvir todos os dias aquela frase típica "você está ficando para titia, hein?".

Saudade definia sua vida no momento. Saudade de ter amigos, de ser parte de qualquer coisa e não ser essa mulher velha e tendendo à chatice que ela estava se tornando.

Há algumas semanas leu uma reportagem sobre os efeitos calmantes e curativos de se ter um aquário em casa - e cuidar dele, obviamente. Mas esse era umd etalhe, afinal, não poderia ser tão trabalhoso cuidar de um aquário.

Se ao menos isso ajudasse a dormir melhor, talvez pudesse acalmar esse aperto no peito que ela sentia. Não custava tentar. Na verdade custava, mas era mais barato do que pagar uma terapia, então, valeria a tentativa.

Ela comprou o aquário, relativamente grande, para acomodar alguns peixinhos coloridos cujas espécies ela não fazia ideia de quais eram. Só precisava alimentá-los, limpar o aquário, verificar o pH da água. Fácil.

Os dias se passaram. Nada do efeito calmante. Nada do sono normalizar. Nada do aperto no peito passar. Pelo contrário, começou a ficar preocupada com o aquário e não conseguia mais dormir, com medo de os peixes morrerem durante a noite.

Péssima ideia o aquário. Continuava com saudades não sabia de que e ainda tinha um aquário grande e estúpido para se preocupar.

Cansada dessa vida de mesmice, desse marasmo de acorda, trabalho, cuida do aquário e finge que dorme, ela resolveu sair. Ir a um bar, beber sozina, afinal, não ligaria para seus colegas adolescentes do trabalho e muito menos para as amigas que agora eram mães ocupadérrimas e não tinham tempo para esse tipo de coisa. Gente chata. O mundo era chato.

Foi a um lugar bacana, um pub novo naquele bairro legal. Quem sabe essa não seria sua noite de sorte. Pelo menos respiraria novos ares e na pior das hipóteses, veria gente diferente e voltaria para sua vidinha de sempre.

No balcão, pediu apenas água. Fingiu que estava esperando alguém, só para sentir o clima do lugar. Começou a observar as pessoas. Um olhar aqui e outro ali. Muita gente acompanhada... ninguém sai sozinho de casa mais? Talvez ninguém vivesse essa vidinha chata. E muito menos sentisse saudade de algo que talvez nunca tenha existido e ela nem conseguia imaginar o que poderia ser.

Inesperadamente, o barman traz um drink: "Bala de prata, com os cumprimentos do Sr. Rafaeli". Ela olhou ao seu redor e um homem bem vestido acenou um brinde à distância. Ela retribuiu o olhar e o brinde e se deliciou com aquele drink, feito com vodka, leite condensado e uvas verdes. Como aquele homem poderia saber que ela gostava de uvas verdes?

Pura coincidência. E que coincidência. Trocaram olhares, conversaram por um longo tempo. O Sr. Rafaeli morava há pouco tempo na cidade, não conhecia quase ninguém, aquele papinho. Mas ela gostou. E pela primeira vez em anos, ela dormiu. E ela nem se lembrou do aquário ou da saudade, apenas do gosto do bala de prata e dos beijos e algo mais.

Voltaria para sua vidinha no dia seguinte. Ou aquilo mudaria para sempre sua vida. Não poderia prever. Nem queria. Bastava uma noite bem dormida e ela já não era mais a velha chata de trinta e poucos antes. E nem os amigos adolescentes tardios eram mais tão chatos. E talvez ela pudesse participar de alguns aniversários de criança. Quem sabe? Só sabia que para sempre queria a companhia dessa delícia inesperada: bala de prata!

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