7. O Carbúnculo Azul

285 17 0
                                    

          Fui visitar o meu amigo Sherlock Holmes na segunda manhã depois do Natal, com a intenção de lhe apresentar meus cumprimentos. Ele estava recostado no sofá, envolto num roupão azul, o cachimbo do lado direito e, ao alcance da mão, um maço de jornais amarrotados, evidentemente consultados há pouco. Ao lado havia uma cadeira sobre cujo espaldar estava pendurado um chapéu de feltro, bastante velho, de aspecto repulsivo e até rasgado em diversos lugares. Uma lente e uma pinça encontravam-se no assento da cadeira, o que sugeria que o chapéu estava ali para ser mais cuidadosamente examinado.

          — Vejo que está ocupado — disse eu; — talvez o incomode.

          — Nada disso. Gosto de ter um amigo por perto para poder discutir minhas pesquisas. O assunto é muito comum — e apontou com o polegar para o chapéu velho —, mas há alguns pontos relacionados com ele que possuem um certo interesse e são até instrutivos.

          Sentei-me na poltrona e aqueci as mãos junto da lareira, pois fazia tanto frio que havia cristais de gelo nas janelas.

          — Suponho — observei — que, embora pareça comum, este caso tenha algo de fatal de permeio, ou seja, a pista que vai guiá-lo na solução de um mistério e contribuir para a punição de algum culpado...

          — Não, não. Nenhum crime... — disse Sherlock Holmes rindo. — Somente um daqueles engraçados incidentes que surgem quando há quatro milhões de seres humanos acotovelando-se dentro do espaço de poucos quilômetros quadrados. Entre a ação e a reação de tão densa colmeia humana, pode-se esperar que aconteça a maior combinação de fatos possível e surjam muitos problemas estranhos e bizarros, que nem por isso são crimes. Disso já temos experiência....

          — Tanta — ponderei —, que dos últimos seis casos que juntei às minhas anotações, três estavam isentos de qualquer resquício de crime legal.

          — Precisamente. Você se refere aos esforços que fiz no sentido de recuperar os documentos em poder de Irene Adler; ao singular caso da jovem Mary Sutherland e à aventura com o homem da boca torta. Bem, não duvido que o caso presente caia na mesma categoria inocente. Conhece o comissário Peterson?

          — Conheço.

          — Este trofeu lhe pertence...

          — É o chapéu dele?

          — Não, não. Ele o encontrou. Não se sabe quem é o dono. Examine-o, não como a um chapéu velho, mas como um problema intelectual. Mas, em primeiro lugar, deixe-me contar-lhe como veio parar aqui. Chegou no dia de Natal, juntamente com um belo ganso gordo, o qual, a estas horas, não duvido, está sendo bem assado no fogão, em casa de Peterson. Os fatos são estes: às quatro horas da manhã, mais ou menos, no dia de Natal, Peterson, que, como sabe, é um homem honesto, regressava de uma festa e dirigia-se para casa, passando pela Tottenham Court Road. À sua frente caminhava um homem de altura regular, cambaleando, à luz fraca do gás, e carregando às costas um ganso. Quando chegou à esquina da Goodge Street, deu-se um conflito entre o homem do ganso e um bando de vagabundos. Um desses derrubou o chapéu do homem, que, tentando defender-se, levantou a bengala e com esse gesto quebrou a vitrina da loja que estava às suas costas. Peterson tinha se adiantado para proteger o homem contra os assaltantes, mas ele, amedrontado por ter quebrado os vidros e vendo que alguém de uniforme se dirigia para ele apressadamente, largou o ganso e fugiu em disparada, sumindo no labirinto de ruelas que ficam atrás da Tottenham Court Road. Os vagabundos também correram, devido ao aparecimento de Peterson, e assim ele ficou de posse do campo de batalha e também dos trofeus da vitória, que se compunham deste chapéu maltratado e do ganso, um dos melhores que ele poderia esperar para o Natal.

As Aventuras de Sherlock Holmes - Arthur Conan Doyle (Clássicos Zahar)Where stories live. Discover now