O Nascimento da Lua

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Há muito tempo atrás, o céu noturno era habitado só por estrelas, pois ainda não existia a Lua. Daí que, quando o Sol deitava sua graça atrás do derradeiro horizonte, de cujos mistérios apenas o céu é ciente, não havia ninguém que pudesse dizer quanto tempo duraria seu descanso. Sem a Lua, a noite era imperscrutável. Por onde vagava o breu soturno, a tudo tornava nebuloso com sua vagueza. Quando a noite se fazia presente, o brilho das estrelas permanecia timidamente diminuto, tão longe era o passado de onde provinham. E assim viviam os seres: obravam de dia e recolhiam-se ao baixar das negras cortinas até o completo sombreamento das coisas. Nem mesmo as corujas, os mosquitos, as onças e todos os animais que hoje têm hábito noturno saíam de suas tocas quando o cenho à sua volta era tomado pelo negro mistério. Tamanha era a escuridão por que profunda era a noite.

Também os seres humanos tudo faziam de dia por que lhes faltava gosto pela noite. Sendo nula a luz, eram, por isso, dificultosas as caçadas e as pescas. Era também custoso calcular as estações do ano e preparar colheitas apropriadas. Se algum crime ocorresse fora da vigilância solar, era quase certo ficar impune. Se, porventura, o culpado fugia mata adentro, jamais seria encontrado por que tinha na noite um álibi poderoso. Mesmo as guerras tornavam-se previsíveis, pois careciam de estratégias mais ardilosas que se aproveitassem da parca luminosidade. Nesse tempo onde a Lua não existia, também não havia religiosidade noturna e nem o vocabulário dos povos conhecia palavras como "luar", "luau", "lunar", "lunação", "sublunar", "lunático", entre outras. Desse modo, todos os cânticos, sacrifícios e outros ritos eram privilégio do Sol e de suas façanhas diurnas.

Inclusive, o nascimento de Iaory era também tributado ao Sol por conta da dádiva que, dizia-se, este lhe havia concedido. A menina era conhecida como "aquela do luzente sorriso" porque suas feições de júbilo contagiavam a todos com deleite. Essa sensação de intensificação de potência, os outros nativos a comparavam com o poder solar de vivificar os seres. Por isso também diziam que o sorriso de Iaory brilhava como o Sol. E quando brincava com Cumayá, correndo pela aldeia, era a oportunidade perfeita para as pessoas espreitarem e capturarem na memória uma vez mais a imagem daqueles lábios e dentes se comprazendo agradavelmente no meio daquela travessa agitação.

Iaory e Cumayá eram muito amigas e costumavam brincar à beira da praia, onde o mar, divertidamente, atirava suas águas e fazia bolhas para instigá-las a rir. À tarde, quando o magistral Astro abrasava a pele da gente, as duas cunhatãzinhas banhavam-se na margem do oceano, que acalentava suas ondas para a segurança das suas amigas. Quando saía das águas, Iaory levava no seu corpo um pouco do mar e este ficava com pedacinhos da pequena índia diluídos no seu infinito azul. E isso é a amizade, quando pedacinhos da gente ficam no corpo do outro alguém e vice-versa. Iaory gostava do mar e o mar gostava de Iaory.

Quanto a Cumayá, ela queria um pedacinho da sua amiga que não podia ter: seu fascinante sorriso. Para consolá-la, Iaory dizia que, quando crescesse, Cumayá se tornaria uma bela mulher, admirada por todos e que, então, seria ela, Iaory, quem teria inveja de sua beleza. De fato, com o passar dos anos, as duas amigas cresceram e se tornaram belas cunhatãs, de grande venustidade. O luzente dom de Iaory atraía agora a atenção de vários rapazes. Cresceu também, contudo, a inveja de Cumayá, que, não obstante ter se tornado igualmente uma mulher formosa, passou a cobiçar mais o atrativo e delgado sorriso da amiga.

Quando o perverso desejo de Cumayá falou o mais forte possível, ela planejou um embuste para capturar o sorriso de Iaory: arrancar-lhe-ia os dentes, depois de mata-la, e os colocaria num extenso colar, feito do nobre linho de algodão. Enquanto estivesse usando-o, esse amuleto transferiria para Cumayá a maior virtude da sua vítima. Retirou-se, então, para dentro de sua oca e cobriu a entrada com um emaranhado de folhas de palmeira para que não recebesse visitas. E assim foi por uma dezena de dias. Nem sequer Iaory ela recebeu e nem respondia quando lhe chamavam do lado de fora.

Ninguém na tribo havia recebido notícias de Cumayá. Até que num dia ela pediu a um curumim que mandasse dizer a Iaory que estava muito doente, sentindo-se muito debilitada e que, como último desejo, gostaria de rever a melhor amiga à beira da praia onde costumavam brincar na infância. Ao fim da tarde, sob a luz do poente, as amigas se encontraram e conversaram até o cair da noite. Iaory pediu, então, que retornassem à tribo, mas Cumayá queria que ambas se banhassem uma última vez no mar que sempre coroou aquela amizade. E assim mergulharam no negrume das águas e, num gesto traiçoeiro, Cumayá afogou a bela amiga.

Ao perceber que tinha sido usado como palco daquela calamidade, o mar agitou-se em agonia e jogou ao alto suas águas, chorando a morte da amiga. As ondas vinham se chocar umas contra as outras e desse movimento, tão espetacular quanto doloroso, formou-se uma grande bolha que trazia dentro de si o corpo de Iaory. Em direção à negra abóbada, subiu o corpo da índia, protegido pela bolha. Parou ali, ao lado das estrelas, onde recebeu novamente a vida, agora, porém, sob a forma de Lua. Num gesto de gratidão, Iaory, a Lua, sorriu para o mar, que, em troca, refletiu nas suas águas a luz daquele belo sorriso. Essa é a fase da lua minguante. Ao contrário do que diz o nome, não é a fase final do ciclo lunar, mas é por onde a Lua começou. O que acontece é que o homem de ciência já se esqueceu da sabedoria que sua antiga gente passava um para o outro, de boca em boca, e hoje descobre tudo do avesso. Toma o efeito pela causa.

Daí, então, uma forte luz iluminou a noite. E a tribo inteira olhou para aquela grande esfera no céu e logo reconheceram que seu brilho era o brilho do sorriso de Iaory. Depois disso, a noite deixou de ser medonha para os seres. Muitos animais gostaram tanto da nova ambiência que adquiriram hábitos noturnos, como o lobo e a moreia.

Esta é a história do nascimento da Lua, tal como me foi contada pelo meu pai, que aprendeu da sua avó, que ouviu da sua mãe, que lhe foi contada novamente pelo seu pai e, assim retrocedendo, foi sendo transmitida sempre por alguém que não apenas jaz sob a terra, mas, é a própria Terra.


– EPÍLOGO –


– E o que aconteceu com Cumayá, papai?

– Oh, bem... Essa é uma parte da lenda que não é contada e eu suspeito que, às vezes, seja de propósito, embora digam que ela não existe oficialmente.

– Mas, conta. Só para eu saber, vai.

– Tudo bem. Dizem que, depois de Iaory, a Lua, ter iluminado o céu noturno, Cumayá teve que conviver com as pessoas exortando ainda mais a nova beleza da amiga. As pessoas agradeciam pela luz, apresentavam-lhe oferendas, saudavam-na com cantos, poemas, artes e discursos. Esse foi o castigo da índia má: ser a responsável pela imortalidade daquela que tentou matar. Por causa disso, a sua inveja e o seu ódio foram tremendos que, ao morrer, transformou-se em espírito do mau. Dizem que, desde então, Cumayá continua a atravessar gerações e gerações, cometendo inúmeras maldades, todas sempre à noite a fim de que as pessoas tornem a se intimidar e a perder o interesse pela noite. Seu intuito, com isso, é fazer com que todos associem a chegada da Lua com o prelúdio do mau e, assim, fazer cair no esquecimento o sorriso da bela Iaory.

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