XXXV - As muitas cores do mundo

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"Eu devia ter ficado feliz, mas tinha a sensação de que havia espíritos malignos presentes e tive medo de que acontecesse alguma coisa que o impedisse de voltar."

in O Historiador, Kostova, E., Gótica, 2005



A flor era vermelha, com cinco pétalas carnudas sarapintadas nas partes interiores por manchas brancas. No centro, onde se unia a corola, saía um tufo de filamentos, também brancos, que se agitavam como se farejassem o ar. Espetava-se numa longa folha que flutuava no rio, a alguma distância da margem, e fazia parte de uma pequena flotilha de folhas que se deslocavam pela correnteza, carregando cada uma, nos estranhos conveses verdes, uma flor vermelha.

Logo que me deparei com aquele espetáculo corri para o rio a vê-lo. Era a primeira vez que via flores e cores vibrantes, como aquele encarnado sangue que se destacava na paisagem amarelada da lua desabitada. Passavam mansamente descendo o curso de água, muitas flores, cada uma com a sua folha a servir-lhe de flutuador. Nem conseguia imaginar que fenómeno natural estaria por detrás daquela viagem rumo, possivelmente, a um mar revolto que as engoliria para sempre, sepultando em tumba marinha aquela beleza viva. Ajoelhei-me entre os arbustos esféricos e estiquei o braço para alcançar uma das folhas, puxá-la e ficar com um exemplar daquela magnífica flor.

Apesar dos meus esforços, os meus dedos nem chegavam a roçar os limites arrebitados da folha. Também não estava a apetecer-me molhar, pois para além de ter descoberto, naquela manhã, que a água do rio era mortalmente gelada, a sua profundidade era considerável, pois atirara uma das pedras com que desenvolvia os meus exercícios e esta imergira sem que me tivesse apercebido de que tocara o fundo. Experimentara com outras pedras e todas elas se perderam no abismo fluvial. E nem sabia se não existiriam animais a nadar por ali que atacariam à mais mínima perturbação do seu reino aquático. Por isso, teria mesmo de alcançar a flor com a mão.

Quando a flor que marcara inicialmente passou, volvi a minha atenção para a que vinha imediatamente a seguir. A montante do rio ainda vinham muitas e tinha por onde escolher se falhasse a captura da segunda flor. A procissão vermelha parecia não ter fim. Ajoelhava-me na margem, tentando não me molhar, de braço esticado. Os meus dedos tocaram na folha que abanou ligeiramente, mas não o suficiente para desviar a sua rota para a margem. Ao invés, ainda se afastou mais.

Terceira flor. Rangi os dentes. Haveria de apanhar uma, nem que esquecesse as minhas cautelas iniciais e me atirasse ao rio, mesmo com a água fria, a fundura inquietante e os animais desconhecidos.

Um raio de sol, quente e dourado, bateu-me no rosto. O dia findava, o quarto dia de treinos. Como os anteriores, fora ocupado com o mesmo exercício de levitação de pedras. Luke considerava que eu ainda não dominava satisfatoriamente a técnica, que eu precisava de concentrar-me mais e de identificar a Força na paisagem que me rodeava sem hesitação ou receio. Obrigava-me a repetir o exercício até que eu o fizesse não por instinto, mas por habilidade. No início ficara frustrada com a escassez de progressos, tanto meus, como das lições do meu mestre que me pareciam tão fúteis e simplórias. Como poderia eu enfrentar-me a Kram, utilizar um sabre de luz, se passava horas a brincar com pedrinhas?

Num ato de rebeldia, quando Luke se afastava, limitava-me a jogar com as pedras, fazendo-as rebolar e chocar umas com as outras, atirando-as ao rio. Depois, como via que isso não o atraía até mim, que não o fazia indignar ao ponto de se zangar com a minha indolência, praticava o exercício.

Naquele quarto dia não aconteceram grandes descobertas, mas a repetição exaustiva do ato de identificar a pedra e erguê-la no ar até pousá-la na palma da minha mão ajudara a consolidar a minha aprendizagem. A minha propensão involuntária para manobrar a Força dava lugar, paulatinamente, como a passagem mansa e segura das flores vermelhas pelo rio, ao conhecimento efetivo de que sabia utilizar a Força.

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