- Não tente me tirar do sério! – rebateu antes de uma golada soberba no líquido amadeirado – Eu não quero o seu dinheiro, e sim o bem do meu sobrinho, aqui sentado. Você e o Jonas estão acabando com a vida do garoto, colocando-o pra dormir embaixo daquela peneira.

Palavras não resumiriam o olhar fulminante que Norma direcionou como resposta.

Uma distração

No migué, Benjamin trouxe das panelas não mais do que a quantidade necessária para entupir o intestino de um canário. Teria dificuldade para correr dali, mas esperava sair sem maiores escoriações emocionais, portanto, atacou as pequenas quantidades de arroz de forno, maionese, salada e o suco para empurrar para dentro entre uma garfada e outra. Seus engasgos eram um preço baixo a pagar pela "paz" de seu quarto zoneado.

Os pulmões de Norma se encheram de raiva e impaciência...

– Daniel, eu só te chamei aqui para avisar que Jonas e eu, graças a Deus, colocaremos nosso filho em um colégio para pessoas como ele. Fizemos o favor de te chamar para vê-lo antes que ele se mude para lá.

Mais respingos do uísque resvalaram em Benjamin, porém, desta vez, o copo de Daniel se mostrou menos resistente contra o chão. Os múltiplos cacos não ganharam a atenção de Norma, estática, fria e cheia de razão.

- Você enlouqueceu!? O garoto é meu sobrinho! Nosso sangue! Não vai tirar um menino de dezessete anos de um inferno pra coloca-lo em um pior! Cheio de malucos, ainda por cima!

- Tenha seus próprios filhos, Daniel. Aí quem sabe você possa decidir o que fazer com eles, se também forem malucos. – terminou com ênfase.

- Olha lá como se refere ao Ben! – ambos pareciam tenistas, urrando numa partida pela vida, lance-a-lance. – Ele é um ótimo menino, um garoto...

– Esquizofrênico, cacete! – Esbravejou antes de arrancar o avental e tacá-lo contra o chão. – Isso que ele é! E necessita de mais cuidados do que seu orgulho de merda acredita ser necessário!

Enquanto a discussão entre Daniel e Norma se acalorava, Benjamin engoliu os últimos grãos de seu prato. Imediatamente se levantou para sumir do caos instaurado, entretanto, antes que pedisse licença ao tio, soube que essas palavras não sairiam de sua boca. Não naquele dia.

Benjamin não duvidava que os acontecimentos a seguir seriam interpretados das mais diferentes formas pelos ali presentes: Para o tio, apenas um mal estar; para os pais ou até mesmo seu irmão, Benson, seria alguma obra do demônio; Mas, para ele, Benjamin, tudo se resumiria a um som, uma entidade, A Voz.

Suas mãos se elevaram para tampar os ouvidos, a cabeça latejou, e os pensamentos se tornaram meros sussurros perante A Voz apocalíptica que clamava pela morte...

"Ela te acha inútil, garoto. Mostre a ela".

Benjamin não percebeu quando seus dedos envolveram a base da lâmina junto ao assado, nem quando a posicionou na ofensiva, só o que percebeu foi a ardência crescente na palma da mão que gradativamente apertava o crucifixo.

"Mate-os!" – a ordem bombeou o cérebro feito um coração acelerado.

A mão armada se ergueu aos poucos contra Daniel.

- Santo Deus! Ele esta tendo uma recaída! - exclamou Norma, assustada.

Gritos como aquele levavam Benjamin a momentos passados, tempos sem maldito laudo, e sua única preocupação era correr até a janela para checar de onde vinham os primeiros sussurros monossilábicos de sua cabeça. Conforme o tempo passou, os chamados tomaram forma, tal qual uma ferida que cresce sem parar, banqueteando-se de sentimentos ruins até criar vontade própria. Benjamin foi desumanizado pela Voz. As primeiras mudança de comportamento lhe tiraram a escola, em seguida a chance de conquistar amigos, e, consequentemente, a oportunidade de viver. Dessa vez, Essa Voz queria lhe tirar seu tio. Foi a primeira vez que Benjamin cogitou passar o fio de corte no próprio pescoço.

- NÃO FAREI! – Benjamin esbravejou a plenos pulmões antes de arrancar no cordão do crucifixo em volta do pescoço, então tacou o objeto para longe dali e investiu contra a própria jugular.

"É mesmo? Talvez tenha escolhido a resposta errada" – finalizou A Voz, antes de sumir e deixar Benjamin onde estava.

Daí pra frente foi tudo muito rápido, Benjamin sentiu o tranco de seu próprio corpo contra a mesa, sua mão, torcida pelo pulso e seu rosto grudado junto a mesa sob o peso de um par de mãos pesadas.

- O que está acontecendo com você, Ben? – Daniel não afrouxou a pegada.

- Eu... Eu... – balbuciou o garoto. - Não sei... A voz...

- Tudo isso aconteceu por sua culpa! – esbravejou Norma sem dar chance de uma resposta concisa por parte de Benjamin. Com o dedo apontado contra o rosto do irmão, prosseguiu – É obvio que ele precisa de um internato! E de preferência sem ninguém para estressá-lo, como você acaba de fazer!

O nervosismo tirava somente sílabas desconexas da boca de Daniel.

E Norma finalizou na medida que se dirigiu até uma das gavetas da pia e de lá puxou uma ampola, depois uma seringa:

- Nós não precisamos da sua autorização para cuidar do nosso filho! Não faz ideia da cruz que é cuidar dele! Você não sabe como é  conviver com a incerteza de encontrar um filho  vivo ou morto quando chegar do culto, pois você é só um tio que aparece de vez em quando e atrapalha a provação dos servos do Senhor que habitam nessa casa!

O cabo da faca se chocou contra a mesa e o sangue de Benjamin voltou a circular por baixo das marcas avermelhadas de onde Daniel o segurou. Ao encarar o tio, a esperança era encontrar um apoio, mas era uma mescla de dúvida e confusão que desenhava a expressão no rosto barbudo. Isso foi o suficiente para que sentimentos se resumissem a cacos, e antes que Norma se aproximasse com o medicamento que fora buscar, lagrimas escorreram do rosto de Benjamin até o chão, e em ritmo maior conforme a fuga da cozinha se deu com um disparo veloz em direção ao quarto cheio de goteiras. 


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 Ah, e caso você queira acompanhar meus outros trabalhos, eu também tenho um podcast com dicas para escritores, onde eu faço uma bateria de entrevistas com os grandes nomes da literatura nacional. Caso queira escutar (e saiba que você é mais do que bem-vindo), o conteúdo dessas entrevistas está disponível pelo site www.audiocosmo.com.br, clicando na aba "12 Trabalhos".

Um forte abraço! E até daqui três dias!

AJ. =)

Asas, Pingentes e ImortaisWhere stories live. Discover now