Capítulo 3 - Chuva solitária

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Vigésimo quinto ciclo do minério

Azallos

Caesar

A Grande Capital vista de longe, cercada por sua muralha, era um colosso de rocha cinzenta e madeira escura em meio aos campos dourados e reluzentes do norte de Azallos. Nem mesmo a forte chuva, que castigava os mares de grama amarelada, tirava seu destaque, e a cidade permanecia imponente e grandiosa na paisagem. Do alto dos imensos muros, entre as ameias de pedra e as de cima das torres rudimentares, um bom atirador poderia eliminar qualquer ameaça facilmente. Muitas vezes, alguns pequenos grupos de cães tentaram retomar o território, mas sem sucesso. A cidade nunca fora invadida desde a sua fundação.
Amanhecia quando o lenhador avistou pela primeira vez os muros da Capital. As pernas de Caesar estavam pesadas quando ele apeou de Vapor. Suas costas doíam e a garganta ardia mais do que nas noites anteriores. Pensou em Vapor quando olhou para os grandes olhos amendoados da égua. Com certeza estava exausta da viagem, mas não havia reclamado ou diminuído o passo sequer uma vez.

No mar amarelo de grama, uma ou outra árvore de copa verde crescia. Caesar caminhou até a que parecia proteger melhor a chuva e amarrou firmemente as rédeas em um dos galhos. Ao apertar o nó, seus dedos calejados doeram e se enrijeceram. Tossiu e sentiu mais uma vez a garganta sendo arranhada. Seu cabelo escuro estava encharcado, assim como suas roupas e sua mochila. Os dias na chuva o deixaram combalido, mas Caesar não pensava nisso. Apesar do tempo fechado, estava calor e a chuva o ajudava a se distrair das dores.

- Eu já volto – disse Caesar, passando a mão no pescoço de Vapor.

A égua relinchou como se entendesse o que ele havia dito e sacudiu o pescoço para tirar a água da crista. Então se posicionou o mais próximo do tronco que pôde e fechou os olhos para descansar um pouco.
Milhares de homens estavam do lado de fora dos portões. Algumas barracas de pano branco estavam dispostas próximas ao enorme portão de madeira e ferro da cidade. Uma parte dos homens estava nas filas. A outra saía com algumas coisas de dentro das barracas, enquanto outros tantos conversavam entre si. Os portões foram deixados entreabertos. Uma senhora mais velha espiava pela abertura, buscando avaliar o material humano que seria mandado para a guerra. Usava um casaco para se proteger da chuva. Parecia assustada com a quantidade de soldados reunidos.

Caesar caminhou até chegar mais perto de todos.

- Com licença, - disse, tocar o ombro do homem alto que estava a sua frente, ao final de uma das filas – o que todos estão retirando?
- Acho que são os uniformes – respondeu o grandalhão, tirando água do rosto enquanto falava.

O rapaz não devia ter mais do que vinte anos. Quando ele se virou para responder, seu rosto ensopado revelou que era praticamente uma criança. Seus olhos eram castanhos e o cabelo era quase raspado. Quando removeu a água do rosto, o chapéu que usava, caiu na grama. Caesar abaixou para pegá-lo.
- De onde você é? – perguntou.
- Sou de Goldenleaf, me chamo Benajah, mas me chamam de Ben – disse ao fazer um sinal com a cabeça agradecendo - prazer em conhecê-lo – chacoalhou a mão para retirar o excesso de água e a estendeu.
- Caesar. Sou de Northbury – respondeu - seremos companheiros de portanto.
- Sim – respondeu Ben mostrando seu sorriso desfalcado de dois dentes – você é lenhador? – disse apontando para um o machado que Caesar trazia na sua bolsa.
- Ah, sim - respondeu ao desviar o olhar para objeto.
- Meu pai era lenhador também – comentou diminuindo levemente o volume de sua voz – ele foi convocado alguns meses atrás, bem no começo de tudo. O mandaram há alguns dias para as linhas de frente, onde estão fazendo as primeiras invasões – disse baixando um pouco a cabeça e olhando para o chão – Fazem mais do que alguns dias na verdade. Já deveria ter voltado.
- Tenho certeza de que ele está bem – disse Caesar – a chuva deve tê-lo atrasado na volta.
- Sim, deve ser isso – puxou o nariz e tirou a água dos olhos novamente – minha família e eu retomando as coisas aos poucos - fez uma pequena pausa e desviou o olhar para Vapor – Aquele cavalo é seu?
- O nome dela é Vapor. Gosta de Cavalos? – perguntou Caesar.
- Sim, eu trabalho em um estábulo há alguns anos – disse Ben – você vai levá-la para Hobblemourne?
- Terei que levá-la – disse olhando para sua égua – não conheço ninguém na cidade e não posso deixá-la em um estábulo.
- Lhe falta coragem para deixá-la aqui?
- Me falta dinheiro – disse Caesar levantando um pequeno sorriso – mas não quero deixá-la sozinha na cidade em um lugar de pessoas que não conheço – continuou - Se sentiria sozinha. Ela é mais do que montaria, é minha amiga também. Não conseguimos ficar muito tempo separados – sorriu.
Ben abriu um sorriso também.
- A fila está andando – Ben colocou a bolsa que carregava no ombro sobre a grama, para guardar seu chapéu. Só então que Caesar percebeu que Ben estava descalço. A fila andou rapidamente.
Do lado de dentro da grande barraca havia algumas mesas, onde os generais estavam distribuindo os uniformes. Caesar e Ben se aproximaram de uma das mesas. O major Foster estava lá, coordenando a distribuição. A general Anvil provavelmente estaria com as tropas mais ao sul. Para Caesar, Ben e os demais soldados foram entregues uma gandola amarela dourada, com dois bolsos na altura do peito e mais dois nas laterais do abdômen, um par de calças também amarelas douradas, essas com apenas um bolso na parte de trás e um par de coturnos pretos. Caesar imaginou se esses seriam os únicos pares de calçados que Ben teria no momento. Também receberam uma gabardina bege, para os dias mais frios. Não que elas fossem o suficiente para proteger-se do frio, mas não também que alguém se importasse se os soldados sofreriam com os ventos gelados do sul.
Caesar colocou o uniforme todo dentro de sua bolsa, junto com o restante das coisas que havia trazido e junto com Ben, foi até onde estava Vapor. Lá embaixo da árvore, eles se sentaram no chão, escorando-se no tronco da árvore.
Muitos soldados ainda chegavam, tanto de dentro da Grande Capital, quando das cidades vizinhas. Caesar reconheceu entre eles, o mensageiro que havia aparecido no dia que fora convocado. Mas não se lembrava de seu nome. Viu o rapaz tropeçar nas próprias pernas, como na vez em que viera informar a General Anvil que os stroms não buscavam negociar paz. Caesar pegou-se imaginando se a chuva teria mesmo atrasado o pai de Ben.
- Quero lhe mostrar algo – Ben procurava algo entre suas coisas.
Ele enfiou sua mão enorme na bolsa e começou a mexer em tudo. De lá ele tirou uma foto, levemente desbotada que ele guardava dentro de uma caixinha com alguns outros objetos para mantê-los secos - Esse aqui é o meu irmão, Eli – apontou para um bebê que tinha os cabelos enrolados e pele morena como a dele – e essa é a minha mãe – A mulher que segurava o recém nascido era alta, muito parecida com Ben, por volta dos quarenta e poucos anos– e esse é o meu pai – esse era idêntico ao filho, a única diferença era que apresentava algumas poucas rugas e um ou outro cabelo branco. Era da mesma idade de sua mulher.
Caesar pegou a foto com cuidado, protegendo-a com a mão para que as gotas que passavam pela grande copa da árvore, não a atingissem.
- Qual o nome dos seus pais?
- Minha mãe chama-se Theodora e meu pai, Ammiras.
Na foto, ele via os três abraçados, um ao lado do outro, todos sorrindo enquanto o bebê Eli dormia. Estavam em frente a um bosque de folhas laranjas, marrons e douradas, comuns em Goldenleaf. Por alguns segundos, ele observou a foto da família de Ben e lembrou-se da sua. Lembrou-se de Isabel. Lembrou-se do quanto ela sofreu ao perder os pais no ataque. Lembrou de como ela havia lutado para sobreviver e para criar Evangeline. Nisso, lembrou-se de sua pequena filha e lembrou-se também que aquele último abraço que ele a havia dado, poderia ser o último abraço que ela receberia do próprio pai. Todas essas lembranças arrancaram uma lágrima pesada dos olhos de Caesar e lhe deram um nó na garganta que o fez tossir. A garganta mais uma vez ardeu e a cabeça voltou a doer. Caesar tentou afastar esses pensamentos por hora. Voltou a olhar para a foto e notou, um pouco mais ao fundo no bosque, um potro cinzento de crista negra.
- E este cavalo, como se chama?
- Não demos um nome a ele ainda. Nascera alguns dias antes de tirarmos a foto. Logo depois, meu pai partiu. Depois foi minha vez. Prometi a minha mãe, que quando voltasse, teria escolhido um. Ainda não tive idéias. Se tiver alguma, me diga.
- Tudo bem – respondeu Caesar sorrindo.
A chuva havia diminuído agora e alguns raios de luz passavam pelo céu nublado. Havia certa melancolia na forma como a água caía no chão. Até mesmo antes, quando caía forte, trazia um sentimento solitário. Nem mesmo as grandes fábricas da Capital e o povo que já estava nas ruas, faziam tanto barulho quanto o som de gotas se chocando contra a grama e rocha. E ainda sim, o som era rouco. Alto, mas rouco.
Ben havia notado a distração de Caesar com a chuva.
- Minha mãe ouviu da mãe dela que há muito tempo atrás as chuvas vinham seguidas de rugidos fortes e muito altos e também uns clarões que cegavam até a Vigia do Norte.
- Rugidos? – perguntou Caesar curioso.
- Sim, pelo o que ela me disse, Ohr e os outros deuses lutaram por muitos anos com esses rugidos e por todos esses anos, uma tempestade tomou conta do nosso céu. Essa longa tempestade era uma das estações, mas ela nunca se repetiu, então todos se esqueceram dela. Se é que um dia aconteceu.
- E o que era esse rugido?
- Já ouvi outras pessoas contarem coisas parecidas. Algumas dizem que era um dos seis deuses, que era menor e mais fraco que os outros e buscava mais poder. Minha mãe me contou que era uma coisa ruim, que contaminou as terras mesmo após ser derrotado e trouxe a crueldade para o coração dos homens e dos cães. Eu acho que nada disso acontecia. Minha mãe conta muitas estórias, assim como as outras pessoas. O que sei é que agora as chuvas ainda caem, servindo apenas para molhar sua cabeça e lhe dar resfriados – completou rindo e puxando o ar com força pelo nariz.
Caesar parou um momento para admirar o céu e as nuvens escuras que anunciavam mais água ainda por vir. Ele percebeu que a chuva era de fato pacifica demais e passava a estranha sensação de solidão, caindo lentamente, mas o lenhador não conseguia entender bem por que ele tinha essa impressão.
Vapor encostou sua cabeça nas costas de Caesar.
- Que foi garota? – disse acariciando seu focinho.
Ela apontou com a cabeça para as barracas brancas. Os soldados estavam se preparando para partir. Junto com algumas centenas de soldados, a maioria deles a pé. Caesar, Ben e Vapor começaram sua jornada, até a cidade de Hobblemourne.
Foram poucos os dias em que não choveram desde que saíra de casa. Estava doente e cansado, mas a chuva, havia se tornado uma distração boa. Quando sentia o frio da água correr pelo rosto, pelos cabelos e roupas, se sentia melhor de alguma forma. Parte dos pensamentos ruins eram afastados. Mas apenas uma parte. Melhor do que nada. Chuva solitária? pensou. Assim como Vapor, ela seria sua companheira nessa jornada.

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Canções da Trovoada - Tempos de GuerraOnde as histórias ganham vida. Descobre agora