Prólogo: O Primeiro Movimento

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Norte de Markaz. Mês de Ianin*, 1792 d.E.

A última noite de Ianin chegou fria e precoce. Trouxe consigo um vento a uivar pela fresta das janelas; ele cantarolava lamentos esquecidos e o som ecoava pelas paredes, parecendo entoar os males do porvir. Velhas dissonâncias de almas partidas. As notas assombravam o escuro da noite, capazes de despertar espíritos antigos.

O visitante se moveu como uma sombra, mais um fantasma caminhando pela mansão imponente. Ele abriu as portas devagar, uma a uma, com um aceno de sua mão, seguindo o ritmo das cantigas do vento, tão vibrantes e vívidas em sua pele. Respirava com calma, regozijando-se com o ar que entrava em seus pulmões. Entretanto, não se engane com a lentidão, ele sabia perfeitamente que podia vencer distâncias tão rápido quanto um piscar. Sabia que podia terminar com tudo o mais lépido possível, mas apreciava ir com calma. Permitir que o espetáculo fosse duradouro, lânguido, a fim de conquistar o público mais exigente, sempre foi uma de suas maiores habilidades. Ainda mais quando se tratava de uma matança.

Para ele, o segredo nunca foi chegar ao ápice e sim aproveitar o trajeto.

Assim, aquele homem passou pela sala bem-ornamentada, subindo as largas escadarias curvas e bifurcadas. O mármore frio lhe pareceu um anfitrião educado, dando um arrepio nos seus pés despidos. Um toque de docilidade e familiaridade, não muito diferente de seus tempos áureos, algo que ainda parecia igual, mesmo depois de tantas mudanças no mundo à sua volta. Inalou o ar, fechou os olhos. Sentiu-se estranhamente em casa. Como podia se esquecer dos antigos salões nos quais fora coroado? Ou do mármore dos templos em sua homenagem? Dos antigos corredores dourados que o recebiam com uma reverência polida, tão similares e diferentes daquele corredor longo que ele agora percorria com as vestes puídas esvoaçando atrás de si.

Seu odor não era convidativo. Jamais fora. Ele sabia que fedia, mas também tinha conhecimento que o seu odor em nada se assemelhava à Morte, em nada remetia à carne pútrida em decomposição. Seu cheiro era doce, convidativo, venenoso, enjoado, ferino. Cheiro de renascimento, de mudança.

O visitante escancarou a última porta com violência, ouvindo a madeira se chocar contra a alvenaria em um estrondo abafado. O casal que estava deitado na luxuosa cama de dossel se sobressaltou, olhando-o com temor. Era como se um trovão tivesse invadido sua bucólica paz, mas não havia chuva lá fora, nem uma nuvem sequer. O homem se ergueu primeiro, esbaforido, raivoso, barulhento; a mulher o fez depois, cansada, sonolenta, histérica. Foi quase fácil demais colocá-los sob seu julgo, amarrados e ajoelhados como os vermes que eram. Ela, sem dizer uma palavra, com lágrimas silenciosas escorrendo pelo rosto magro, prevendo o desfecho da noite. Ele, continuava a encarar o visitante com petulância, parecia disposto a cair de pé, a lutar até o último suspiro.

"Pois bem" pensou com sarcasmo. "Que assim seja."

Ergueu-o como um trapo e, enquanto seu anfitrião ainda estava amarrado, socou sua barriga, na altura da boca do estômago. Uma, duas, três vezes. A mulher gritou, mas sua voz foi abafada pela mordaça improvisada com pano. O algoz não se deu por satisfeito, gostava de ouvir a agonia de suas vítimas, nada era melhor que o guincho dos ratos agonizando, enquanto o sangue pintava o chão. Retirou a mordaça do que apanhava e em seguida fez o mesmo com a esposa, ela o encarou com seus olhos azuis vibrantes, parecendo implorar em silêncio, mas aquilo não o comoveu. Nada o comovia.

Seu objetivo era claro e ele não pararia até ter o que desejava.

— Jamais conseguirá. — O homem disparou a frase após cuspir sangue no chão do quarto. — Nunca vai ter...

Sua frase se perdeu em outro soco, no mesmo ponto que o anterior. O visitante sorriu por debaixo do capuz cinzento que usava, sua risada, metálica e rouca depois de tantos anos, ecoou pelo quarto.

— Quem disse que quero algo de vocês? — Sua voz soou estranha e metálica em seus próprios ouvidos, mas era suficiente para despertar um calafrio. — Quem disse que são importantes o suficiente para barganhar comigo?

O visitante segurou seu anfitrião pelo pescoço, erguendo-o alguns centímetros do chão, e o lançou para o outro lado do quarto, como uma boneca velha. Descartável, todos eram assim. O proprietário da casa acertou as costas na parede, arfando, e cuspiu sangue no chão. Tentou se erguer, mas sua força parecia drenada.

— Veja só, vocês não passam de moscas que preciso me livrar. — O encapuzado se aproximou do dono da casa e pisou em seu rosto, pegando um punhal que trazia consigo e acariciando a lâmina com afeto. — O que são reles duques, descendentes de um bastardo, perto de um rei. O único Rei.

Então, ele puxou o cabelo do homem, exibindo sua garganta. Pressionou o punhal suavemente, vendo o filete de sangue escorrer pelo metal.

— Não é o título e as terras que torna seu sangue azul, bastardo.

Com um movimento ágil, rasgou a pele do duque. A duquesa deu um grito agudo, enquanto o encapuzado apenas se aproximava dela, devagar.

— Não perderei meu tempo com você.

Com um movimento lépido, matou a mulher com um corte preciso e profundo. O segundo corpo tombou no chão e ele limpou o punhal nas roupas de um cinza claro. O rubro do sangue estampou suas roupas como uma estranha e mórbida pintura; um personagem macabro nas novas galerias de arte, com o vermelho pintando os tapetes e os olhos vidrados dos mortos em canto algum.

Em meio aos corpos, sentiu-se novamente como o sacerdote sangrento. O rei jamais deposto. Um antigo deus.

Havia sido tudo isto e logo voltaria a ser, não importava o que lhe custasse.

Mas haveria de ter paciência, o primeiro movimento estava dado. O resto? Apenas as jogadas dos peões.

Inaptas, desajeitadas.

No fim, os animais cairiam em sua armadilha. Exatamente como havia previsto.

As Relíquias de Aether: A Guardiã (DEGUSTAÇÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora