Capítulo 1

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Apenas graça é o que Henrique acha quando uma senhora de cabelos cinza-amarelados se aproxima e pergunta se ele está bem e se, por acaso, não passa mal naquela fantasia no calor que faz e, claro, quem é o empresário cruel que o obriga a fazer isso, afinal. Como resposta, o jovem sorri e dá uma voltinha, como se estivesse num desfile, com cuidado para não atingi-la com o pedaço de pau em seus ombros, carregado de pacotes de amendoim.

Tantas respostas para dar.

Ao menos assim, senhora, ele consegue respirar. Diferente, por exemplo, da fantasia de Pikachu que passou a usar no auge da febre do Pokemon Go. Aquela máscara fedendo ao próprio suor acumulado, a visibilidade praticamente nula. Mas não podia reclamar. A verdade é que sua mãe fizera um excelente trabalho e a garotada adorava. E garotada atraída é sinônimo de dinheiro no bolso.

Então, agora? É lucro essas mãos ao ar livre, assim como parte do pescoço, os olhos e as narinas. Sim, as pontas dos pêlos de barba de plástico espetam e coçam um pouco. E, sim, há uma cachoeira de suor correndo por debaixo desse manto vermelho-vivo e no couro cabeludo. Mas o mundo não está mais aprisionado por trás de fibras grossas de algodão amarelo e isso faz da fantasia de Papai Noel o céu.

Ou quase isso.

Henrique prossegue com passos firmes e lentos. Por incrível que pareça, é bem no meio do dia, e não no fim, que a mercadoria lhe pesa mais nos ombros. É o momento em que já trabalhou horas suficientes para estar cansado, mas que ainda não vendeu o bastante para que o fardo se torne mais leve. A areia tórrida afunda debaixo de cada passada e parece querer agarra-lhe os calcanhares, impedir-lhe a jornada. Uma poça de suor se acumula num halo circular que acompanha o gorro em sua testa. Eventualmente a poça se torna tão volumosa que escorre numa bica em direção aos seus olhos e não seria prático limpá-los agora por causa da necessidade de equilibrar a vara em seus ombros com ambas as mãos. Então, é enquanto o jovem tenta piscar a ardência fora que uma peteca colorida é lançada apenas um pouco longe demais e o esforço descomunal da menina para alcançá-la a lança em direta rota de colisão com o Papai Noel vendedor.

Impacto em três, dois, um...


Debaixo de um céu perfeitamente azul e sem nuvens, refletido em um mar ondulante e salpicado de pontos de luz logo abaixo, rapazes bem-treinados e bronzeados respingam suor e areia, saltam e espancam uma bola de plástico na quadra improvisada de vôlei. Um senhorzinho bronzeado e curvado rebate uma bola com um disco circular para uma criança loira, bem na beira da água brilhante. Um avião zumbe carregando consigo um banner que divulga a importância do uso de protetor-solar. Duas adolescentes com sorrisos dignos de propaganda Colgate demonstram ser um verdadeiro desastre na peteca, mas se divertem mesmo assim no processo. Um páraglide colorido desliza ao empuxo de um Jet-Ski ruidoso. Toda a atmosfera exala vida, energia, beleza e alegria de viver.

Ou seja, um verdadeiro inferno.

Ao menos aos olhos de Miriam.

Protegida por um vestido azul-celeste, muito parecido com o que vira Serena van der Woodsen utilizar num episódio na praia, a jovem desenha com o dedo indicador os contornos de um pinheiro na areia quente e, mais acima, precipitando-se sobre o cenário natalino imaginado, flocos de neve ampliados, com toda uma riqueza artística de detalhes. Culpem os filmes, culpem o que quiser. Miriam olha para a praia com olhos irritados pelo sol e pelo suor que escorre de sua testa e sente que está perdendo algo. Algo que lhe foi por toda a vida negado. Porque... isto... conclui, frustrada, enquanto destrói a obra-de-arte com ambas as mãos ... isto... não é... como deveria ser... o Natal.

Não se trata apenas de aparência ou sensação. Miriam não se considera assim tão fútil. Não se trata simplesmente de usar longos casacos e botas lindíssimas, cachecóis e luvas de plumas e, ai, aqueles tapa-ouvidos fofíssimos. Nem de aspirar o ar gélido e aguardar a queda desse glacê mágico que enfeita o mundo e uniformiza tudo.

Se trata mais da dualidade que essa imagem pré-programada de um Natal de inverno provoca em sua alma. É quase uma fissão existencial! Afinal, como é possível cantar de coração "let it snow, let it snow, let it snow" num mundo que lhe nega a possibilidade disso? Quais outros ideais de sua alma seriam meras utopias? Teria sido realmente alimentada apenas de mentiras durante toda a sua vida? Programada com conceitos irrealizáveis?

Não! Inconcebível!

Desistir do Natal que sonha seria relegar-se ao cinismo, viver subjugada pela realidade impiedosa, sem criatividade, sem fantasia e sem esperanças! Um dia ela precisa ter esse Natal, um Natal branco e gelado. Essa resolução momentânea, ao menos, a anima um pouco. Então permite-se reclinar contra a toalha fina azulada estampada com flores brancas e observar os arredores. É, Miriam admite que o cenário é belíssimo. Mas jamais para o mês de dezembro, isso é fato.

Lógico que podia ser pior.

Miriam podia, por exemplo, ao invés de estar deitada, refletindo sobre a filosofia da falta de neve no Natal santista, estar no lugar daquele vendedor ambulante.

Coitado.

LET IT SNOW - Um conto de Natal brasileiroWhere stories live. Discover now