Capítulo 1 - A mudança

46 6 3
                                    

Os anos se passaram e aquela criança que fora encontrada em uma noite de lua cheia, ao lado das palmas que alimentariam os bichos, se tornou um garoto cheio de vida chamado Deomiro, mais conhecido por todos como Mirunga.

Assim que Mirunga completou 7 anos, seu pai adotivo, o velho Abelardo faleceu, obrigando a viúva Geralda a sair do antigo sítio no arruado de Biu da Égua para morar no centro de Jururupema.

O padre Augusto, cumpadre do velho casal e padrinho da criança, ajudou na mudança da pequena família, junto com alguns vizinhos e os acompanhou durante todo o trajeto entretendo o pobre menino, contando-o como sua história começou:

- Naquele ano a seca foi muito braba, num foi cumade?! - Perguntou o Padre à Dona Geralda.

- Foi sim, cumpadi padre "Agusto". Me alembro que no dia que esse minino apareceu, o calor foi terrívi, mas a noite fez um frí  do binidito. - Respondeu a viúva.

A conversa sobre a temperatura já não prendia mais a atenção do garoto, que sacolejava na charrete puxada por cavalos magros. Em muitos momentos ele tentava perguntar alguma coisa ao seu padrinho ou a algum vizinho que também conhecia sobre sua história, mas a sua mãe sempre o repreendia:

- Num aperreia minino! Mas será possívi?! Esse minino num tá vendo que a cunversa é de adúto?!

- Mai Mãe, eu só quero sabê como foi que eu cheguei! - O menino suplicou.

Dona Geralda, que já era uma senhora vivida e com pouca paciência para os "porquês" do garoto, deu-lhe um tapa na cabeça e um "puxão de orelha". 

- Já num mandei ficá quéto? Tu num tá vendo que eu falando com o cumpadi "Agusto"?! - Ela complementou o sermão.

- Deixa o menino, Geralda. - Interveio o Padre - Olhe meu filho, ainda temos muitas horas de estrada. Se você prometer não aperriar a sua mãe, eu conto tudo o que você quiser saber.

- Cumpadi, deixa esse minino queto, cumpadi! Esse minino é danado demais, hômi! - A velha alertou.

- Deixa eu conversar um pouco com ele então, só assim ele se acalma. A viagem é longa, a estrada é ruim e de uma forma ou de outra, precisaremos conversar sobre isso. Quem sabe esse não é o momento?! - Disse o Padre Augusto.

A mãe de Mirunga deu de ombros, fazendo sinal para que o Padre continuasse com o assunto que tanto chamava atenção da criança.

- Deomiro, meu menino, há mais ou menos 6 anos seu pai, o finado Abelardo, que Deus o tenha, me procurou na igreja junto com sua mãe em uma manhã. Eles estavam muito preocupados com uma criança no colo que chorava mais que cabrito sem mãe. Vieram até mim sem saber o que fazer com aquela criança de aproximadamente 1 ano de vida e que não tinha nenhuma identificação. - Começou o padre -  Abelardo, nervoso e impaciente, me contou que havia lhe encontrado em um balaio próximo à cocheira onde ficavam os bichos e desde então, você não tinha parado de chorar.

- Eu chorava muito? - Perguntou Mirunga surpreso.

- Sim, meu filho. Você estava ao relento, provavelmente com frio e com fome. Na época, cumade Geralda e cumpadi Abelardo não sabiam cuidar de criança. Passaram a noite em claro e quando o dia começou a amanhecer, pegaram a estrada para Jururupema para me ver e me perguntar se eu conhecia os seus pais biológicos.

- O que "é" pais biológicos? - Perguntou o menino cheio de curiosidade. - O sinhô conhecia?

O Padre sorriu com as perguntas curiosas do menino e respondeu.

- Pais biológicos são seus pais que o tiveram de forma natural. Sangue do seu sangue, carne de sua carne. Como você já sabe, o cumpadi e a cumadi são seus "pais do coração". Você não nasceu da barrida da cumadi Geralda.

- Mas então o sinhô num conhecia meus pais bio...bio o quê? - Mirunga perguntou novamente.

- Não Deomiro, eu não conhecia seus pais biológicos - Ele respondeu "biológicos" dando ênfase à palavra. - Sabe filho, naquela época, não muito diferente do que acontece hoje, a seca e a crise financeira faziam com que muitas famílias partissem em busca de ajuda, de algo melhor. Nesse desespero, muitos acabavam dando seus filhos, pois tinham medo que eles passassem fome. Então, procuravam famílias com um pouco mais de condições na esperança que eles tivessem uma vida melhor; e acho que foi o que aconteceu com você. Seus "pais do coração" eram pessoas muito conhecidas da cidade, principalmente por já serem idosos, não terem filhos e possuírem terras com animais.

-  E por que o sinhô é meu padim? - O menino perguntou interessado.

- Como participei da sua história desde o início, seus pais me confiaram a responsabilidade de ser seu padrinho. Esse inclusive é um dos motivos de estarmos aqui, nessa mudança para a cidade. Com a morte do seu pai e por causa da idade de sua mãe, você precisará de alguém para ajudar na sua criação. Vocês vão morar em uma casa na rua da igreja. Assim, posso ajudar a cumade Geralda a cuidar de você.

- Eu já sô hômi, padim. Oxe... carece não! - Disse o menino irritado.

O Padre Augusto sem querer pegou em seu ponto fraco, por mais que Mirunga ainda fosse um menino e tivesse apenas 7 anos, ele não se recordava do dia que não havia ajudado na plantação de palma ou nos cuidados com os animais. Talvez esse dia tivesse existido, mas não fazia parte da memória sofrida daquele garoto. Ele não se via como criança.

O menino aprendeu que se quisesse comer, teria que ajudar a colher. E que se quisesse brincar, teria que encontrar companhia. Sendo assim, se afeiçoou aos animais que moravam no sítio e nomeou cada um como se fossem da família ou amigos próximos. Saber que seus "entes queridos" não faziam parte da mudança para a cidade de Jururupema deixava seu coração partido e ele não conseguiu guardar por muito tempo sua indignação.

- Por que eu não truxe Gilda e Jurema? - Perguntou o pequeno se referindo às suas "amigas" cabritas.

- Miruuuuuuuuuuunga! - Repreendeu sua mãe - Já fali pra você!

- Ôxe mãe!!! - Se defendeu o menino.

O padre sorriu mais uma vez e respondeu.

- Algumas coisas na vida, filho, não acontecem do jeito que queremos. Mas só com tempo para você aprender...



Do Berço ao Avesso [Hiatus]Where stories live. Discover now