- Vocês se preocupam muito. - Limitou-se a responder. Tinha em mente que a maioria dos seus encarregados não esperava encontrá-la. Os humanos não acreditavam de fato na morte, pois sempre ficavam muito surpresos com ela. E havia o medo. A pequena supunha que todos eles tratavam a passagem como uma fera - algo selvagem, bruto, que pode ser afastado.

- E você não tem preocupação alguma.

- Na verdade eu tenho. Se eu não levar você...

- Vai ser punida? Porque se for, eu realmente vou pensar em ficar!

Era sempre assim. As emoções daqueles a quem deveria guiar transitavam entre o medo, decepção, raiva, alegria... e quase sempre misturadas a muita surpresa. O humor deles oscilava ainda mais por causa de suas dúvidas. E haviam muitas. Contudo, a pequenina não podia descrever como é o lugar para onde vão, porque nunca esteve lá. Tão pouco sabia por quanto tempo ficarão - pois era certo que um dia voltarião. Era difícil explicar que não importa se estava correto ou não o caminho religioso que tomaram - a verdade é que o que conta é o que vai no seu coração.

Mas por eras, a pergunta que sempre lhe dera mais trabalho era "O que - ou quem - é você?". Quem a melhor a definira - a ela e seus pares - foram os gregos. Lembrou-se disso com certo prazer quando seu próximo encarregado a fez pisar em Veneza.

A pequenina poderia escolher um modo de guiá-lo para além daquele mundo de carne - fosse por uma porta de luz, por uma estradinha, fazendo-o fechar os olhos. Mas ali, pensou, era apropriado pegar um barco não? Algumas pessoas se sentiam mais seguras assim, deixando o mundo de uma maneira bem humana - como da vez que tivera de dirigir uma limusine para uma idosa senhora rica.

Claro, às vezes ela perdia uma alma. Não é como se elas pudessem fugir ou esconder-se. Simplesmente não queriam partir, prisioneiras dos restos de sua vida, agora, passada. O que era muito triste, pois esses humanos estavam fadados ao "lugar nenhum" e quanto mais demoravam mais difícil ficava deixar aquela terra. Mais presos ficavam aos dramas de suas antigas famílias, aos farrapos de sua existência.

A dor daqueles que conheceram os intoxicava como mel envenenado - tão doce, tão perigosamente paralisador. Depois, com o tempo, o esquecimento aqueceria os corações desses pobres espíritos humanos com raiva, desgosto e desprazer. E ainda haviam aqueles que movidos por vingança, ódio e revolta, se colocavam a interferir no mundo que não era mais deles. E como iria explicar para aquele homem, tão amargo com sua morte, que havia pressa na partida? Porque a dor de um companheiro assassinado, de um filho morto, eram incrivelmente poderosos. Ele escutaria as vozes, sem dúvida. Logo os dois ouviriam o lamento dos queridos de Theodore fazerem o espaço a volta deles quase pulsar. Enquanto não descobrissem seu corpo no fundo de um dos muitos canais de Veneza, haveria tempo. Mas ela nunca podia contar muito com o tempo.

- O que foi isso? - Theo perguntou assustado.

Isso, pensou a baixotinha, é o aviso de que devo me apressar. Respondeu:

- Sussurros.

- Eu sei. Mas de quem? Deus é mulher? - Estava confuso. Havia uma voz feminina murmurando, irreconhecível, ao menos agora.

- Deus É o que É. Vamos. - a mãozinha infantil apontou - Tomar o barco.

- O barco?

- É... veja, não é como seu houvesse um Aqueronte... ah, antes que pergunte, alguns de vocês me contaram sobre o Tal Caronte, mas não, eu não sou ele.

-Caronte?

- Ah, achei que conhecesse esse mito. Bem, é um mito apropriado. Uma pena.

- Tenho de conhecer mitos para entender o que esta acontecendo?

Fábulas SobrenaturaisWhere stories live. Discover now