A Barqueira

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Estavam parados a frente de um ancoradouro, observando as gôndolas ondularem ao sabor da respiração de veneza. Eram uma manhã gelada, pálida e difusa. Um homem, muito bem vestido em seus trinta anos, arrumava o cabelo castanho com alguma angustia enquanto, a seu lado, o que poderia ser descrito como uma criança de dez anos aguardava.

A pequena tinha cachos compridos e volumosos cascateando até quase seus joelhos, usava um vestido branco diáfano e nada nos pés. Como os cabelos, os olhos eram cor de mel, muito vivos. Enquanto os cabelos de ambos brigavam com o vento, conversavam. O homem parecia exasperado, gesticulando vez ou outra - se algum conhecido o visse, em seu terno, pensariam que estava brigando com algum subordinado.

A menina contudo parecia divertida, então desceu para junto das pequenas embarcações. O piso ali estava um pouco úmido, mas não se importava. Estavam sozinhos ali - ainda que as sombras de outras pessoas flutuassem ao redor deles como fantasmas.

- Não fique tão chateado - pediu a menina. Mas já havia pedido isto mais de duas vezes na ultima meia hora, então decidiu tentar outra abordagem - Sabe - volveu em tom casual - você tem... uhn... potencial.

- Para que? - tornou o homem, agressivo - Para adubo? Para estatística? Para comida de peixe? - elevava a voz cada vez mais, mas a pequena não parecia perder o bom humor - sabe, você poderia ter sido mais gentil. Eu estou no fundo, no fundo! Quando minha família vai me encontrar? Alias, vão me encontrar? E aquele desgraçado que me assaltou ontem? Ele por acaso vai ter um fim tão ruim quanto o meu?

- Eu não sei, mas com certeza um dia ele terá um fim. - Sorriu - E não se preocupe tanto. Você não é o que vão encontrar no fundo dos canais de Veneza, isso se encontrarem - a pequena não poderia deixar passar a chance de provocar - quanto a gentileza, tenho pedido com toda a educação para me acompanhar...

- E porque daquela maneira? Porque fui morrer daquela maneira? - Esbravejava. "Aquela maneira" ainda estava marcada em seu corpo, embora sua pequena acompanhante já houvesse explicado que ele não precisava portar as marcas de sua passagem. A barriga do homem possuía um corte, e dali, um pouco do recheio macio escorria em tons de vermelho-viceral.

- Há muitas coisas que fogem de meu conhecimento.

- Então a morte não sabe porque... - começou a argumentar, mas logo foi cortado. A pequenina encontrou ali uma brecha - possivelmente a que lhe ajudaria a cumprir sua tarefa.

- "Como a morte pode ser tão pequena?" -atalhou, com sua voz e maneiras aveludadas. Já havia dito a ele que não era um anjo, nem um espírito guardião. O homem parou um instante, em dúvida e quando tentou falar, ela o cortou mais uma vez:

-Eu não sou "A Morte"...E... Tudo bem, eu posso parecer um pouco baixa para a maioria das pessoas que fazem a travessia - para as crianças não, por um motivo óbvio. Se eu fosse chutar minha altura, diria que deve ser a média dos dez anos. Alias as pessoas dizem "você é só uma criança". Bem, é difícil ser uma criança, sendo que eu nunca fui humana.

Respirou fundo, retirando o blazer danificado. A mãe havia chamado-o de Theodore, a esposa e amigos íntimos de Theo. Ele gostava do som, e agora iria deixá-lo para trás.

- Claro que não é humana, você não entende! Se entendesse... não.... - ele viu o sorriso perene no rosto da baixinha, seus modos suaves, e enervou-se - não estaria assim.

- Assim?

- É. Feliz.

Afinal morrer era uma coisa triste.

Os olhos cor de mel titubearam por um instante. Creio que por isso a maioria deles tem uma severa dificuldade em lidar comigo, pensou.

Ela não tem nome - não como humanos esperam ao menos - ou uma função que consigam compreender. Também não possui uma boa resposta para perguntas como "como é o céu?", "existe inferno?", "O paraíso é como me falaram?" - e a melhore delas na opinião da baixinha: "Então minha religião estava errada?". Era um tanto desconcertante porque ela acabava sempre rindo e os humanos pareciam ser muito sensíveis quanto as suas dúvidas e temores.

Fábulas SobrenaturaisWhere stories live. Discover now