Capítulo 1

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Cristabell observava a trajetória da maçã, enquanto Branca jogava-a para cima e deixava que caísse novamente em sua palma, a face moldada no que parecia ser uma expressão dura e permanente.

— Aquele desgraçado — disse a princesa, ficando as unhas na maçã.

A carta sobre a mesinha de ferro ao seu lado e aquilo que a acompanhava, eram as fontes de seu ódio e frustração. Cristabell entendia os sentimentos da garota que aprendera a ter para si como uma filha, mas procurava manter a calma. Como rainha, não poderia se dar ao luxo de perdê-la. Não naquele momento.

— Branca, recomponha-se. Não é a primeira e nem será a última vez que o rei de Arriet irá provocá-la. É assim que ele joga e você sabe disso melhor que ninguém. Agora, pare de brincar com um objeto de maldição.

Branca largou a maçã sobre as outras, dentro da cesta que descansava sobre a pequena mesa. As maçãs amaldiçoadas que havia enviado como resposta a proposta de casamento do rei Kendare de Arriet. A cesta que ele havia mandado devolver alegremente com uma carta em resposta as palavras venenosas do bilhete que a própria Branca tinha sentido prazer em escrever. Tal resposta dizia:

"Estou feliz por ter se dado ao trabalho de me surpreender com tal presente divertido, e também por possuir uma noiva tão sincera. Tu, que és a mais bela, a única merecedora de ser minha esposa, acabaste de provar que nunca será enfadonha. No entanto, da próxima vez que quiser atentar contra a minha vida, tente ser mais criativa. Algo tão simples como uma maldição do sono sequer me deixaria indisposto por um dia. O Reino de Snow não é o único possuidor de magia, minha querida.

Com amor, Rei Kendare de Arriet".

Mesmo Cristabell podia sentir o sarcasmo gotejando de cada palavra.

— Poderia me deixar sozinha? — Branca pediu polidamente, juntando as mãos atrás do corpo e se virando em direção a ampla varanda de seu quarto. Quando deu alguns passos a frente, assim como as cortinas, seus cabelos longos e negros oscilaram à briza suave, contrastando belamente com seu vestido vermelho.

Cristabell assentiu, ainda que a princesa não pudesse ver o gesto, e disse:

— É claro.

Levantou da beira da cama macia onde estivera sentada e se dirigiu a saída do quarto, fechando a porta atrás de si ao sair. Suspirou, sabendo que não podia fazer mais nada. Branca tinha que tomar decisões e fazer suas próprias escolhas. Enquanto não aprendesse a lidar com seus sentimentos em desordem, qualquer conselho a ser dado por alguém, provavelmente seria completamente inútil. Mas Cristabell não poderia deixar de tentar.

🍎🍎🍎

Branca esperou por um instante depois que Cristabell saiu do quarto, então se dirigiu a seu espelho coberto. Suas mãos tremiam levemente enquanto retirava o tecido vermelho e macio que o encobria, e deixava que este caísse no chão. Embora fosse um espelho comum de vidro emoldurado em ouro, o feitiço que sua madrasta a ensinara a pôr sobre ele fez com que sua superfície nebulosa ondulasse como água quando ela o tocou. A magia correndo em suas veias, entrando em sintonia com o objeto.

— Espelho, espelho meu — murmurou com reverência —, quem é a mais bela de todas?

Tal como das outras vezes, a névoa refletida no espelho desvaneceu-se e mostrou-lhe seu reflexo.

Tu és a mais bela, a voz ecoou em sua mente, trazendo lhe um arrepio. Isto ainda não mudou e assim permanecerá por um longo tempo.

Branca deixou-se fitar a si mesma, demorando-se em cada detalhe. Os olhos incrivelmente azuis pálidos, a pele clara e macia, os lábios de um vermelho exuberante e os cabelos inimaginavelmente escuros. Ela engoliu em seco. Tamanha beleza era a maior responsável pelos diversos pedidos de casamento. Talvez se tivesse tempo e menos preocupações, poderia considerar aquilo como uma benção, mas era justamente tamanha dádiva que tinha lhe tirado a liberdade. Kendare a queria. Ele era um rei poderoso e já tinha a declarado como dele. Um dia, Branca sonhou com isso, em ser sua esposa. Mas isso foi na época em que eles eram amigos. Quando Kendare ainda era príncipe. Quando nenhuma traição entre reinos interferia em sua relação. Mas o destino era uma coisa engraçada. Branca não duvidava que Kendare começaria uma guerra sem hesitar caso ela se casasse com outro homem. Não importava se a guerra fosse contra seu reino ou qualquer outro. Porque ele era orgulhoso. Orgulhoso ao ponto de não se incomodar com as suas "brincadeiras". E porque ele a amava mais do que ninguém. Branca sabia disso, mas sequer importava algo? Tentava ao máximo ignorar aquele grave pecado.

Exausta de olhar para si mesma, deu outra ordem ao espelho:

— Mostre-me o meu destino.

Uma névoa escura encobriu seu reflexo, e quando voltou a sumir, deixou para trás uma imagem que lhe tirou o ar. Sempre tirava. Não importava quantas vezes repetisse aquela ordem, pois seu destino era ele. Ser dele. E isso a trazia tanta raiva, mágoa e mais uma confusão de sentimentos opostos, que fazia com que Branca tivesse vontade de quebrar aquele espelho a cada maldita vez. Como seu coração havia se quebrado dois anos atrás.

No espelho, a imagem era tão real que só podia ser verdadeira.

Kendare estava sentado diante de uma mesa, um mapa estendido sobre ela. Seus cabelos castanhos caiam ligeiramente sobre os olhos, enquanto se inclinava para frente. Os olhos verdes, percorrendo cada marca vermelha no mapa — países que o Reino de Arriet dominava — e as marcas azuis — que demarcavam o território em torno de Snow e Arriet —, pareciam ter um brilho ligeiramente calculista. Como um verdadeiro rei.

O destino segue o rumo que seu coração deseja, a voz disse novamente.

— Não — disse ela, fracamente.

Mas Branca apenas se negava a desejar. E por isso tinha raiva.

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