Parte 1

59 10 6
                                    


Eu sempre os observei. A vida inteira, eu os vi crescer. Mas ninguém se importava muito comigo, limitavam-se a me olhar quando era necessário e isso sempre me foi o bastante.

Quando pequena ela vinha com aquelas bochechas rechonchudas e os lábios entre abertos em um sorriso pentear os seus cachinhos loiros, com aqueles olhos sonhadores, tão azuis quanto o azul da parede de seu quarto. Ela era tão inocente que, naquela época, não compreendia as coisas da vida, não sabia que as pessoas eram classificadas de acordo com muitos fatores que mais tarde fariam uma diferença enorme em seu destino.

Ele vinha, às vezes, visitá-la escondido da senhora que não gostava que os dois brincassem juntos. Brincavam de embalar bonecas como se fossem suas filhas, riam, dançavam, era uma alegria bonita de se ver. A senhora ficava doente constantemente e para os dois era uma festa, pois podiam ficar juntos sem represálias ou às escondidas, vez ou outra ele botava seu rosto frente a mim e me encarava como se aquela pessoa a sua frente lhe fosse outra e não ele mesmo.

Não era feio, mas tinha consciência de que era diferente da garotinha e eu sabia disso pela sua expressão frente a mim, intrigado, sempre pensativo demais para uma criança de seu tamanho, o que lhe remetia uma maturidade que não condizia com sua pouca idade. Seus olhos negros e misteriosos sempre me deixaram curioso, pois pareciam ver além do que lhe era permitido.

Certo dia, lembro-me muito bem, ele parou de brincar com ela perdendo o entusiasmo de repente, correu à minha frente e ficou se olhando atenciosamente, ela não entendeu o motivo da seriedade repentina e veio logo cutucá-lo para voltarem a traquinar:

— Não quero, não agora — respondeu o garotinho emburrado.

— Mas o que aconteceu com você Agenor? — Ele percebeu que sua companheira não iria desistir e por isso soltou um longo suspiro, respondendo-lhe.

— Nós somos diferentes, Sandra, por isso sua mãe não gosta que brinquemos juntos...

Ela o olhou atônita, pois em sua mente eram exatamente iguais. A confusão que assombrou suas feições angelicais era difícil de se entender, afastou-se dele e começou a questioná-lo levemente irritada:

— Diferentes? Por que pensa isso? Não acho que somos diferentes.

— Como não? Olhe para mim e olhe para você, Sandra... Você é branca, eu sou negro — vociferou ele erguendo as mãos como se para mostrar à amiga o que era óbvio para ele.

— Deixe de bobagens... — disse com um sorriso meigo. — Prefiro pensar que faltou tinta quando eu nasci e por isso não temos a mesma cor! Mas isso não tem a mínima importância, você tem olhos, mãos, braços... Você é exatamente igual a mim. Agora deixe disso e vamos brincar!

Talvez ela estivesse falando a verdade, pois era uma menina sem maldades no coração, mas talvez estivesse tentando consolar o amigo para que ele não se sentisse triste. As verdadeiras intenções de Sandra eu nunca soube, mas anos mais tarde pude perceber que eram verdadeiras. Sem sucesso em convencer a amiga, Agenor voltou a brincar com a mesma alegria de momentos antes.

Mas o episódio daquele dia voltou a se repetir, muitas e muitas outras vezes, o garoto sempre dizia a mesma coisa, às vezes até mesmo dizia que quando crescessem Sandra não iria mais gostar dele por ele ser negro, assim como as pessoas grandes, assim como a mãe dela. Desconcertada, a menina sempre dizia que aquilo nunca iria acontecer, porque ela o amava do jeito que era e lamentava muito por sua mãe.

Alguns anos se passaram, meus travessos já deviam ter cerca de dez anos e eram tempos difíceis, pois a senhora já não podia levantar-se da cama. Pelo que eu sabia, seu estado tinha se agravado muito e a mulher não tinha forças para mais nada, somente esperava o seu fim sem tentar lutar por sua vida. O senhor não permitia que a filha ficasse muito tempo com a mãe, talvez ele tivesse medo de que Sandra ficasse traumatizada em vê-la entregando os pontos dia após dia.

No princípio, Sandra ficou furiosa, vivia chorando e fazendo manha para as criadas e quando a mãe foi levada para a capital a fim de tratar-se com um novo médico, afundou-se em uma tristeza perpétua, mas aos poucos foi se esquecendo e Agenor vinha praticamente todo o dia brincar com ela. Passavam as tardes navegando pelos mares, desbravando florestas e voando para terras longínquas, o que me entretinha muito, para falar a verdade.

Um dia Sandra entrou correndo pelo quarto com um pote em mãos, não sei onde o conseguiu, mas parou diante de mim e se olhou por um tempo. Seu rosto travesso indicava que iria aprontar alguma coisa e foi dito e feito! A danada começou a passar o conteúdo do pote em seu rosto e para minha surpresa era lama negra. Quando terminou de pintar-se toda, Agenor entrou correndo e falando na maior das empolgações, parecendo aliviado por finalmente ter encontrado a amiga, mas quando a viu uma expressão assustada surgiu em seu rosto:

— Mas o que significa isso? — perguntou ele com ar de desaprovação.

— Isso é para mostrar que eu te amo Agenor, agora somos iguaiszinhos! Veja eu tenho sua cor! — dizia minha menina entusiasmada batendo palmas por tamanho contentamento.

Agenor baixou a cabeça e saiu. Desde aquele dia ele nunca mais entrou no quarto de Sandra e ela parecia cada vez mais distante de tudo. Ouvi então, quando o senhor veio lhe visitar e lhe disse que o menino havia sido mandado para a capital para estudar, pois quando ele morresse não queria deixar o pobre garoto desamparado e sem estudo, o senhor seu pai explicava para Sandra que Agenor iria demorar a retornar, que não adiantava ela ficar triste.

Não demorou muito e a noticia de que a senhora havia falecido chegou a nossa casa, tudo perdeu o seu encanto de vez depois disso. Sandra já não ria e não aprontava, talvez estivesse triste em dobro. Pela mãe e pelo amigo... As estações foram passando, uma, duas três... Já não me lembro quantas vezes, mas sei que foram muitas, pois minha menina se transformou em uma jovem, no auge de suas dezoito primaveras.

Moça mais bonita, creio que não existia. Ela ainda guardava os mesmos traços angelicais de quando menina, os cabelos loiros, a silhueta fina, o porte de princesa, mas seus olhos eram tristes mesmo quando sorria. As mudanças de minha Sandra não foram só fisicamente: por ter se tornado uma mulher, ela queria se livrar de todas as coisas que tinham lhe pertencido a infância e a primeira coisa que foi retirada de seu quarto fui eu.

Minha sorte grande é que eu não era um objeto qualquer de menina, e por este motivo fui colocado em um pedaço de parede na sala de estar. Particularmente gostei muito de meu novo posto, podia ver muitas coisas novas, inclusive as árvores do jardim através da janela. Por entre as cores novas que me cercavam, eu viajava para o mundo todo, imaginava-me em castelos de nobres, sendo encomendados por reis da Índia e da China... Ah eu era muito feliz e a alegria da casa, aos poucos, de maneira quase que camuflada retornava, mas a surpresa maior ainda estava por vir.

Certo dia, pela noitinha, a jovem lia recostada ao sofá e o senhor calculava e anotava sentado em seu gabinete ao canto do cômodo, tudo em ordem em um perfeito silêncio que foi rompido por algumas batidas na porta. Ambos se entreolharam surpresos e confesso que também fiquei bastante curioso. Sandra se levantou e foi atender à porta já que os criados já haviam se recolhido, quando ela a abriu soltou um gemido e derrubou o livro no chão, o que assustou o senhor que se levantou apressado e foi em socorro da filha, mas ambos ficaram petrificados diante da porta.

— Não me convidam a entrar? — perguntou a voz forte e imponente do lado de fora.

Por Entre as CoresWhere stories live. Discover now