CAPÍTULO UM

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— E se vendarmos os olhos?— O quê? — Anna quase não escutou o que Marcelo tinha perguntado

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— E se vendarmos os olhos?
— O quê? — Anna quase não escutou o que Marcelo tinha perguntado. Apenas “...os olhos”. Seus pensamentos e sentidos estavam praticamente ligados àquela porta velha e caindo aos pedaços daquela esquecida capela. Horas antes naquela manhã, ela acreditava que não sobreviveria a outro dia. Os nervos à flor da pele. O medo de dormir a fez ficar acordada por quase dois dias. Acha que foram mais dias. Os dias parecem se misturar e o tempo parece não significar mais nada. A fome e a sede batendo lá no fundo como uma pedra caindo em um poço seco. Pensa frequentemente em massas. Ela adora macarronada. Lasanha. Sua língua está tentando molhar seus lábios secos e rachados. Ela fecha os olhos e está imaginando comendo. Foda-se as dietas da porra da academia. Beberia litros de refrigerante. No entanto, ali estava. Apesar de tudo isso ainda resistia. E a vontade que sentia agora era de como gostaria de abrir aquela porta e ir para casa. Nessas últimas horas, pensou em como seria fácil abri-la e sair correndo sem olhar para trás até o Jeep do Lucas abandonado no acostamento de terra à beira da estrada. No entanto, toda vez que estava prestes a fazer aquilo, as lembranças de seus amigos sendo arrastados por algo que ela não conseguiu ver a fazia se acovardar. Lucas viu!, ela pensa assustada. E ficou pior do que já estava e não falou com mais ninguém antes de ser pego.
— Viu o que aconteceu com Lídia? Com Brad? E o Lucas? Enlouqueceram. Sei lá, acho que isso tem a ver com o medo, entende? — Marcelo olha de lado, olhos aflitos, e diz, com medo de ser ouvido: — E se-gre-dos. Vamos fechar os olhos, vamos cair fora daqui. O que acha?
Anna pensa: Fugir? E do quê?
Ela observa o amigo por um momento. Os olhos dele estão brilhando de empolgação com a ideia. E mostra um sorriso estúpido e ela sabe que isso é a nuvem silenciosa do medo que está cada vez mais carregada nele. O medo pode transformar alguns homens covardes em feras, mas no caso de Marcelo, Anna acha que foi deixá-lo mais frouxo ainda.
— Você quer vendar os olhos e ainda sair daqui, onde estamos protegidos, e correr às cegas nesse canavial?
— Uau! — Marcelo está franzindo a testa, surpreendido. Ele estala os dedos. — Você pega rápido! Já que não temos nenhuma venda, só teríamos que usar nossas camisas. Rasgar pelo menos um pedaço para vendar os nossos olhos. Não podemos confiar em nós mesmos apenas fechando os olhos. A tentação da curiosidade em ver pode ser demais.
Ela considera a ideia. E aquela ideia, além de idiota, era assustadora. Anna se imagina correndo feito uma doida, com uma tira rasgada de sua própria camisa vendando os olhos, através daquele canavial. E a sensação de ser tocada por algo que não sabe e nem consegue ver é ainda mais aterrorizadora. Até uma folha tocando na sua pele transmitindo essa terrível sensação seria desastroso. E se houvesse alguma chance? Será que conseguiriam? Não deveriam tentar? Mas, colocar em risco a ‘segurança’ daquela capela abandona? E o risco de um acidente enquanto corriam às cegas? De repente, sente-se terrivelmente despreparada. Sabe que se levar adiante aquela ideia de vendar os olhos, estará fazendo aquilo pelo desespero e o medo. É o que a faz se sentir insegura e acuar. Entretanto, tem um lado dela que acolhe a ideia e quer fazer isso. E o medo dela, naquele momento, se torna algo tão perigoso quanto o que os espreita lá fora. Ela pensa em Lídia, Brad e Lucas.
Seus olhos não estavam diretamente em Marcelo, mas encarava a velha janela tapada por uma tábua de madeira que mais parecia uma folha fina de papel se deteriorando.
— De onde tirou essa ideia?
— Foi de um filme. — Ele fecha os olhos e balança a cabeça. — Não, não... foi de um livro. É, foi isso. O Lucas me emprestou... você sabe o quanto ele era meio viadinho com essa coisa de leitura. — Marcelo dá um risinho, não pausa por muito tempo e atropela suas lembranças com uma frase determinada: — Era sobre uma mãe e seus filhos. Depois de quatro anos trancados em casa decidem tentar a sorte e fazem exatamente isso: vendam os olhos e saem de barco por um rio para tentar a sorte.
— E o que havia lá fora para passarem trancados e com os olhos vendados?
Marcelo pensa. Dá de ombros.
— Não sabiam, mas bastava uma olhadela e a pessoa era levada a atos mortais de violência.
— Está bem. — Anna ergue uma mão num gesto de um guarda de trânsito. Um sinal de que a paciência dela já chegou ao limite. Ela lambe os lábios secos. Está com sede e falar deixa a garganta mais seca. Ela engole em seco. — E você quer que façamos isso baseado num livro ou em algum filme?
— Sim. — ele cora e dá um sorriso constrangido.
Anna fecha a cara. Seu olhar é de reprovação.
— E você já pensou que há a possibilidade de um acidente como uma queda ou uma simples torção?
— Não, mas...
— Já pensou na possibilidade de estarmos correndo na direção errada e acabar mais fundo nesse canavial ou direto para a coisa que pegou nossos amigos?
— Anna, eu... — Marcelo abaixa os olhos.
A raiva irrompe nela.
— E se essa coisa estiver esperando por uma burrice dessas? Já pensou nisso tudo? Não? Eu pensei! Ah, fala sério, acorda pra vida! E para de viver no mundo da lua! Não estamos na porcaria de um filme americano ou em algum livro de ficção, Marcelo!
Ele ergue os olhos.
Por um segundo, Anna percebe nos olhos dele a vontade de atacá-la.
— Então o que faremos? — não fora uma mera pergunta, mas um desafio. Anna percebe na voz dele um aborrecimento. E os olhos ofendidos dele dizendo: Faça melhor!
Agora ela está olhando a porta apodrecida. É muito antiga e parece que a qualquer instante vai se desfazer em pó. Ela nota uma fenda de pouco mais de dez centímetros de comprimento por três centímetros de largura em posição vertical na porta velha. A curiosidade é como uma coceira que Anna precisa coçar. Quer olhar através daquela fenda. Ela encara a fenda e a sensação de estar sendo observada a faz se acuar.
Marcelo não vê e nem percebe, mas os olhos dela estão carregados de desconfiança e a nuvem silenciosa do medo que ameaçava seu amigo, agora está se aproximando dela. Ela sente uma agitação e não consegue entender o que é. É indescritível. Uma cena de sua infância invadiu sua mente; o terço que sua mãe sempre carregava consigo. A lembrança foi como uma pedra caindo num lago.
Ela se sente perturbada com aquela lembrança. A sensação é de vespas em seu estômago.
Anna suspira e sem a menor convicção na voz, diz:
— Esperar...
Ela baixa os olhos para as unhas das mãos. Passa a língua nos lábios. E leva o polegar esquerdo à boca. Roendo as cutículas.

A CAPELAWhere stories live. Discover now