Defeito de fábrica

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Londres, 1888

"Não consigo viver sem trabalho cerebral. Para que mais vale a pena viver? Fique aqui ao lado da janela. Já reparou em como este mundo é melancólico, sombrio e inútil? Veja como a neblina amarelada desce para as ruas e envolve as casas de cores mortas. O que poderia ser mais desesperadamente prosaico e material? Doutor, qual é a utilidade de se ter uma habilidade quando não se tem campo para pô-la em prática? Crime é um lugar-comum, a existência é um lugar comum, e qualidade alguma salva aquilo que o lugar-comum executa neste mundo."
– Filha! – Kira levantou o rosto, assustada – Kira? Kiryn!! – revirou os olhos. Por que sua mãe cismava em chama-la assim?
A garota levantou-se da cama rapidamente, fechando seu livro com força e tacando-o em baixo da sua cama. Prendeu os cabelos o mais rápido possível e antes que pudesse correr em direção seu armário, sua mãe entrou bruscamente pela porta.
– Kira!
– Sim? – ela tentou sorrir diante da expressão brava da mãe.
– Estou te chamando há um
tempão! O que estava fazendo de tão importante?
– Eu só estava... Tirando uma soneca. – Kerry arqueou a sobrancelha, reparando na mentira descarada de sua filha.
Ela andou até o pé da cama e abaixou-se delicadamente, o que fez Kira bufar de raiva. A mãe pegou o livro repousado sobre o tapete e se pôs de pé, em frente à filha, que tinha estampado na cara um sorriso sem graça.
– Você estava lendo?
– Er... Talvez. – ela respondeu, sendo totalmente reprimida pelo olhar decepcionado da mãe.
– Quantas vezes terei que dizer que mulheres como nós não precisam disso? Onde consegue tantos livros, minha filha?
– Isso não é importante... Não vejo problemas em mulheres lerem! Não entendo por que isso te incomoda tanto!
– Minha filha, mulheres não nasceram para ser inteligentes... Só precisamos saber ler, falar e escrever. Aprendeu isso não escola, não?
– Sim, mas...
– Então para que livros? Nunca irá conseguir um marido assim.
– Existem vários homens que preservam uma mulher inteligente, mãe.
– É. Os velhos, barbudos e pobres, Kiryn!
– Não me chame assim!
– Mas é seu nome!
– Colocasse nome de gente em mim então! – Kira revoltou-se. Odiava, simplesmente odiava essas atitudes da mãe.
– Ok. Ok. Kira, não queremos um cara assim, queremos?
– Você não quer um cara assim.
– Porque eu  me preocupo com você! – a mais velha falou, vendo o rumo que a conversa tomaria, novamente – Veja suas irmãs, elas estão muito felizes com seus maridos... E quem os escolheu?
– Você... Eu sei, mas...
– Mas nada! Chega desse assunto! Isso ficará comigo... – apontou para o livro – E você, vá se arrumar! O jantar já está pronto e temos visita!
– Sim senhora. – Kerry sorriu, finalmente deixando o quarto.
Kira fechou a porta assim que a mãe saiu, se sentindo mais livre apenas com ausência da mãe. Qual o problema de mulheres quererem ler? Estavam no século 19, o que havia de errado naquilo? O mundo estava cada vez mais moderno lá fora.
A garota foi até o espelho, se observando.
Bom, às vezes ela achava que nascera no século errado. Kira era como um defeito de fábrica, em todos os sentidos. Começando por sua aparência. Seus cabelos eram lisos, 100% lisos, o que era um grande problema: só existiam mulheres de cabelo enrolado naquele mundo. Ela era obrigada, por sua mãe, a dormir com um monte de rolinhos na cabeça nas épocas escolares, para sair de casa ou para ir a festas.
Odiava usar aqueles vestidos enormes, e odiava muito mais os espartilhos. Argh! Como amaldiçoava esse nome trilhões de vezes ( a pessoa que criou o espartilho deveria ser a pessoal mais cruel de todo este universo) e sem contar que ela odiava seu nome. Kiryn. Que tipo de pai da o nome da filha de Kiryn?? Ela obrigava todos a chamarem de Kira (por mais estranho que também pareça), seu apelido, que ela até julgava gostar.
Apesar das ordens da mãe, Kira continuou com sua camisola. A única coisa que fez, foi prender o cabelo em um meio rabo de cavalo. Somente isso. Na verdade, ela estava até achando que tinha se arrumado de mais para um simples jantar em família, já que provavelmente a visita seria sua tia, sempre aparecendo de vez em quando.
Ela abriu a porta de vagar, evitando fazer algum tipo de barulho. Caminhou pelo grande corredor, e em vez de virar para as escadas, virou para... Hum, podemos chamar de elevador secreto.
Kira foi até o elevador de carga e deu duas batidas no caixote grande de madeira e mexeu na corda de palha que o mantinha pendurado.
– Niall! Está aí? Eu quero descer! – ela cochichou, batendo nele novamente.
– Kira? Suba! Já vou te descer.
Niall abaixou um pouco o caixote, afrouxando a corda e Kira conseguiu se enfiar no buraco, subindo em cima dele.
– Pode descer!
Seu amigo foi soltando a corda de pouco em pouco, até que o caixote passasse por ele.
– Você engordou! – ele comentou, amarrando a corda em seu suporte para que o caixote não despencasse até o último andar.
– Bom te ver também! – Kira saiu do "buraco" e abraçou o loirinho a sua frente – Como você está? Nem conversamos direito essa semana.
– Estou bem... Trabalhando, você sabe.
– Sei... E sinto muito por isso. Já disse que se eu pudesse, mandaria meu pai te ajudar, mas aí minha mãe descobriria que meu amigo trabalha na nossa casa e nos expulsaria daqui.
– Por que sempre fala da sua mãe como se ela fosse o ser mais cruel do mundo?
– Porque ela é, simples assim! – Kira sentou na bancada, sendo cumprimentada por outros empregados.
– Kerry tirou outro livro de você, não foi?
– Talvez... Tá legal, sim ela tirou. Como ela pode ser tão má? Sempre chegando no mesmo papo de que mulheres deviam ser ignorantes e burras. Se não formos inteligentes, o que será da nossa raça? Pra que existimos então? Apenas para satisfazer os prazeres de homens velhos podres de ricos?
– Kira, você já é uma nova espécie, sabe disso. E eu concordo com você... Mas as maiorias dos homens não. As burras são sempre mais atraentes para eles. São mais fáceis de manipular, incapazes de enfrenta-los na frente de alguém e funcionam como marionetes: fazem exatamente o que eles querem.
– É como Shakespeare disse "Choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes".
– Exatamente.
– Bom, só vim dar oi. Tenho que ir para o jantar da família perfeita.
– Boa sorte! Ah, eu e adorei a camisola. Combina com seus olhos. – Niall zoou e Kira riu, mandando um beijo para ele.
Cumprimentou mais alguns empregados antes de sair despercebida pela porta da cozinha. Era comum eles verem Kira por lá, e nunca a destratavam, totalmente ao contrário, adoravam ouvir as histórias que ela tinha para contar de vez em quando.
Ela sorriu, com seu sempre bom humor bipolar, e andou pelo corredor, ouvindo o som de sua bota contra o piso caro de mármore, fazendo um eco irritante soar pelo espaço.
– Está atrasada! – escutou a voz de sua mãe, antes mesmo de atravessar a porta para a sala de jantar.
– Eu sei, me desculpe! Só estava... – Kira finalmente chegou à sala e parou de falar imediatamente sobe a quantidade de pessoas acomodadas na mesa – Ocupada.
Todos sentados se levantaram e a garota nem teve tempo de contar, já sendo intimidada pelo mesmo olhar decepcionado da mãe (provavelmente devido suas vestimentas inadequadas).
– Filha, que bom que veio se juntar a nós! – seu pai, Willian, quebrou a tensão instalada no momento – Querida, esses são os Tomlinson's.

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⏰ Last updated: Sep 15, 2016 ⏰

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