Segurou minha mão ignorando meus protestos e me arrastou pra dentro de casa deixando que meu corpo caísse pesadamente no sofá da sala. Sentia como se cada parte de mim pesasse cem quilos e o contato com o estofado macio do sofá da minha mãe me fez relaxar por um momento.

Observei sua sombra afastar-se sob a luz dos postes que entrava pela janela e desaparecer na porta que ligava nossa ampla e aconchegante sala a cozinha.

Sentia que minha cabeça provavelmente explodiria em mil pedaços quando um líquido doce e tíbio com sabor a frutas tocou meus lábios.

—Eu disse pra você ir embora...

—Irei assim que você terminar de beber isso.

—Eu te odeio...

—Eu sei.

Senti sua mão sobre minha testa, afastando os fios de cabelo colados no meu rosto transpirado e quente.

Eu odiava a forma como ele conhecia essa parte de mim. Essa parte imperfeita e incongruente que não parecia pertencer a melhor aluna da escola, que não parecia em nada com a Chloë que havia ganhado medalhas de estudo em inúmeras matérias e que havia aplicado para uma beca completa em várias das melhores universidades do mundo. Essa Chloë não se parecia em nada com a que recebia elogios afetuosos dos seus pais. Não se parecia a Chloë expressiva e segura admirada por todos os seus companheiros de classe. Não parecia a Chloë que havia namorado o capitão do time de futebol da escola... Essa era uma Chloë diferente e muitas vezes, por mais que eu odiasse admitir, era uma Chloë mais real.

Apoiou o copo na mesa de centro e correu até o andar de cima voltando com uma manta e um travesseiro. Ligou a TV e colocou no canal de desenhos diminuindo o volume enquanto tirava meus sapatos de salto e acomodava minhas pernas sobre o sofá.

Tapou-me com a manta e acomodou minha cabeça no travesseiro. Esperou que eu fechasse os olhos... Esperou que minha respiração agitada se estabilizasse.

Escutei o som quase nulo da porta da frente ao abrir-se.

—Já sinto sua falta. — Talvez fosse o álcool, talvez o sono, talvez os estilhaços que pareciam povoar minha cabeça e pressionar minha testa e impedir que eu me movesse. Abri os olhos e vi como seu corpo permaneceu imóvel diante do som da minha voz e do significado daquelas palavras. —Por favor... Fica só por hoje...

O tempo entre minhas palavras e o movimento da porta ao fechar-se pareceu eterno. Sentei-me com dificuldade no sofá e observei seu rosto pálido, seus olhos de um azul invasivo que me observavam com atenção e certa reticência. O contorno dos seus lábios e a pequena argola no nariz arrebitado. Seus cílios longos e a forma desordenada como ele arrumava o cabelo. Seu jeans escuro desgastado aqui e ali. Sua jaqueta jeans e a camisa branca e lisa por baixo dela. Observei como seu corpo todo se tencionava sobre o toque dos meus dedos em seu rosto.

Aquilo não era certo.

Eu o odiava...

Tocou minha mão sobre seu rosto e aproximou-se lentamente de mim.

Eu não me movi. Havia sonhado em segredo com esse momento uma e outra vez.

Beijou com suavidade o canto dos meus lábios e senti meus olhos fecharem. Seu nariz roçou meu pescoço, suas mãos afagaram meus cabelos despenteados escorregando até minha nuca.

Minha respiração acelerou. Nunca havia acelerado assim antes.

Meu coração saltou inquieto, ansioso. Nunca havia batido assim antes.

Meu corpo estremeceu sobressaltado. Nunca havia estremecido assim antes.

Seus lábios finalmente encontraram os meus. Sua língua acariciou a minha, um ardor desconhecido recorreu cada parte do meu corpo e desejei tocá-lo, o desejei mais perto...

Aferrei-me a sua camisa puxando-o sobre mim.

Senti suas mãos sobre as minhas, livrando-se suavemente do meu aperto enquanto ele se levantava e partia fechando a porta silenciosamente atrás de si.


Me chamo Chloë Dantas. Tudo o que você precisa saber sobre mim pode ser resumido em uma única folha de caderno com alguns pontos principais.

Eu não fumo.

Eu não bebo e tenho meus motivos, só que decidi guardá-los tão fundo que às vezes consigo até mesmo esquecê-los, ainda que um segredo nunca pode ser mantido nas sombras pelo tempo que a gente gostaria.

Estou rodeada de pessoas que chamo de amigos, embora saiba que não posso confiar em nenhum.

Tenho mais medalhas de méritos estudantis do que posso contar.

Sou líder do grêmio.

Líder dos projetos extra de atividades da escola.

Namorei (sim isso já é passado) desde o primeiro ano do segundo grau com o capitão do time de futebol (sim é um tanto clichê). Ele é o segundo aluno com as melhores médias da escola.

Meus pais são advogados e possuem seu próprio estúdio em uma zona bastante movimentada do centro. Nossa vida é cômoda e não temos problemas financeiros.

Minha melhor amiga tem 68 anos e trabalha na nossa casa desde que eu tinha 4.

Sou ótima em debates, direta, teimosa.

Um objetivo?

Terminar o último ano do segundo grau, me mudar pra França e entrar na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts.

Posso ser um pouco fria com as palavras, mas eu transbordo em linhas difusas e tons.

Suponho que cada um pode ser considerado uma arte em si.

Geralmente me custa entender a maioria das pessoas então eu as pinto. Suas almas em pinceladas, jogadas contra o papel branco, escorrendo entre meus dedos, desvelando-se ante meus olhos.

Jamais usei qualquer outra cor em meus quadros. A maioria das pessoas são brancas e negras em seus diferentes tons.

Não havia ninguém que sobressaísse entre os tons neutros da minha vida.

Então ele chegou.

E eu o odiei por isso.

Meu eterno quadro multicolor.

Seu nome era Gabriel Sullivan.

Ainda me lembro da primeira vez que o vi.


Multicolor (DEGUSTAÇÃO) Where stories live. Discover now