A luz roubada de Tracunhaém

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Macuxi não confiava em Anhangá e Xandoré. Eram criaturas maliciosas, julgava o índio. Espíritos traiçoeiros que se alimentavam da guerra, do egoísmo e do mal entre as tribos. Nenhum deles tentou evitar o roubo de Teju Jagua ou fez qualquer coisa, até o momento, para caçar o ladrão. As noites intermináveis, a solidão, o erro em vagar por florestas e matas selvagens na procura em vão pela luz roubada faziam Macuxi se agarrar a qualquer centelha de esperança para recuperar os dias claros de Tracunhaém.

Anhangá não era mais a índia que há pouco havia chegado, com seu andar firme e olhar neutro, aonde estavam Macuxi e Xandoré. Era um veado de vasta pelugem branca e olhos vermelhos e reluzentes que ardiam em fogo.

Macuxi seguia o caminho que os olhos de Anhangá iluminavam. Seguia para o norte, para muito além dos limites de Tracunhaém e, mais ainda, para além dos próprios limites conhecidos pelo índio.

***

Na escuridão temerária que a pesada floresta estava mergulhada, alguma criatura, num espaço aberto, ao longe, cuspia bolas de fogo nas trevas que era o céu. Labaredas vermelhas que lampejavam além das copas das árvores e se perdiam no ar. Uma luz quente e ardente.

Anhangá indicou a Macuxi que era lá que estaria Teju Jagua, rodeado por seus escravos letárgicos, brincando com a luz que deveria alimentar a vida em Tracunhaém. Anhangá deixou Macuxi e deu meia volta, retornando floresta adentro com seus olhos abrasivos.

O índio estava com o cocar de Xandoré e por um momento conseguiu caminhar sem ser percebido entre os homens que vagavam sem rumo ao redor de onde acreditava estar Teju Jagua. Entre eles também haviam criaturas desconhecidas para Macuxi. Pequenos homens de pele clara, orelhas pontudas e mãos furadas. Ligeiros, caminhavam sempre com passos frenéticos e açoitavam, parecia por diversão, os índios hipnotizados.

Macuxi parou quando conseguiu enxergar entre o breu preenchido por uma fumaça densa que lá estava Teju Jagua, como sentenciou Xandoré.

E não teve mais dúvidas.

Teju Jagua parecia guardar a luz que alimentava a criatura que cuspia fogo, um monstro enorme com escamas acobreadas que ruminava os matos e as colheitas levadas pelos índios. A voracidade e a ganância de um demônio que bufava fogo às custas da luz de Tracunhaém e à traição daquele que um dia foi seu maior protetor.

O índio focou na mira, o coração de Teju Jagua. Apoiou no arco a flecha mortal que guardava os poderes das lágrimas de Tupã e o catarro do curumu. Esticou o cipó e esperou.

─ Faça!

─ Faça!

Eram Xandoré e Anhangá que corriam e lhe acossavam os ouvidos sem cessar.

Os dois seres espiavam de longe o índio e vieram ao seu encontro quando este parecia hesitar.

E Macuxi hesitou.

Quando uma porção menos densa de fumaça passou diante dos seus olhos percebeu que Teju Jagua era, na verdade, um prisioneiro. Uma corda, que parecia ser a corda mágica roubada do Kurupi, envolvia e aprisionava o corpo do velho amigo.

Xandoré insistia, tentava convencer Macuxi a lançar a seta no coração do monstro. Anhangá fazia o mesmo.

Macuxi não lançou a arma. Acabou sendo descoberto pelas pequenas criaturas de mãos furadas que o capturaram, levando também seu arco e flecha.

Anhangá, na forma de veado branco, correu e escapou.

Xandoré voltou a ser um falcão negro e voou para longe.

***

Macuxi, aprisionado próximo a Teju Jagua, entendeu.

E entendendo, chorou.

A luz roubada de TracunhaémWhere stories live. Discover now