Monólogo Fúnebre

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Amava-a, e era como se seus olhos fossem o espelho do que havia de melhor em mim, inexistente em mim mesmo, mas tão bem criado no espelho de ilusões.

Ilusões azuis, pouco acastanhadas, negras. Como eram seus olhos, pele e cabelo.

O brilho do azul de quando mirava as rosas da catedral era sua alma, desbordando para as pétalas de la reine, a mais bela flor que há de nascer e ser criada. Transformava, vez ou outra, o rosado das mil pétalas em azul só com o olhar fulgurante; não sei se era só eu quem via esses detalhes.

Mas que pecador eu sou, por olhá-la sem ter a decência de entreabrir os lábios de despudor e dizer-lhe:

— Como são belas as flores que cuida com tanto carinho.

E que são belas como a mestra delas, e a mestra, bela como as pupilas, todas a encantar.

Só não consigo. Sou um incapaz. É infinitamente mais fácil cair de joelhos e amá-la daqui, amá-la de minha visão da janela, cada amanhecer, amá-la quando me deito e quando acordo.

Ela, minha Virgem Maria, à beleza e perfeição do que conheço de mais sagrado! Moldada à semelhança, ou paulatina equidade, ao que nascemos amando desde o ventre. Virgem Maria. Por ela, só por ela, é que eu conhecera a personificação do sagrado.

Eu não haveria de espantá-la com meus dizeres, nem com minha voz, nem com minha aparência, não. Mas com meu feio eu, impuro, que, servindo a Deus nesse local sagrado, sou indecente ao mundo, pois desfaço-me dos mortos do mundo. Não tão impuro quanto o coração do Monsieur de Paris, que, amaldiçoado e abandonado por Deus, ceifa a vida dos semelhantes, mas pútrido o bastante para ser o último a assistir o corpo que cai, que desce, a morte disfarçada por madeirames.

Sou como os mortos que observam do féretro sem luxo. Meus olhos são o negror que espia de lá, mas ao invés de contemplar o horror (que sou eu), contemplam Ècatherine.

É um nome atraente, aos moldes do que é seu corpo, velado pelos panos humildes do vestido, da chemise fina, quiçá puída e diáfana, mal mascarando a juventude arrebitada dos seios, tão doces.

Oh! Como não serão? Pequenos botões, alinhados, malemente pesados à mão, quentes, em pé de igualdade com as rosas que rega dia após dia, sol após sol, a menos que chova no solo seco. Pouco menos seco que eu. Que vontade de vê-los em riste ao meu primeiro toque, desabrochados.

Ela andou alguns passos curtos, recalcados. A pele das coxas (que, certamente, são feitas da mais quente porcelana) resvala uma na outra quando anda. Os quadris de Ècatherine são como se beijados por Deus.

Blasfêmia! O homem santo grita, minha consciência. Respondo com uma pergunta sem confiança: acaso os arcanjos vissem-me tremendo em sua admiração, ficando cada vez mais corado, lívido, com sangue, vida em seu amor, haveriam de me perdoar?

Um pobre como eu há de ser condenado por se desdobrar a esconder o próprio amor, contorcendo-se em ilusão? Isso é castigo por si só. A espada do executor não há de me chegar à vértebra por isso.

Ela conversa com alguém, outra moça.

Meus olhos são o fundo de um lago, e os dela, a beira do céu. Sentenciados a viver um contra o outro, distantes demais para se encontrarem além da admiração. Quem contempla o céu e o reflete sou eu, e o céu é apenas pintado em mil outros lagos e mares, muito maiores e mais profundos que eu. Os olhos dela, azuis, o céu. Minha deidade.

Meu fundo "eu" é a cova da morte do corpo, da lascívia, da paixão nauseabunda. Ao contrário do que disse, ela correria em desespero conforme minha proximidade. Meus dizeres são podres, minha voz é o gemido do que agoniza, minha aparência é o demônio da punição. O cabelo que tenho é puro sebo. A pele de meu pudendo é por demais salgada e fedorenta para ousar adentrá-la.

Quão bela não deve ser sua carne virginal? A cor, rubra, com raros tons mais escuros na comissura e mais claros nas bordas cintilantes. Ah! O orvalho, que seria apenas um sonho intangível para mim e meus dedos calejados; umedecer a aspereza deles, fazê-los deslizar... Até minha boca ressequida.

A tez vil que possuo, que cobre a alma que tem cheiro de humor de doenças, é grossa, de uma vida escarpada e torpe. Quem me dera fazê-la soltar seu gentil sumo! Talvez apenas em olhar para mim. A fealdade em mim é demasiada, e demasiada é minha maldade.

O sangue que viria dela me seria sagrado! Pudera eu bebê-lo; seria imortal por seu amor. O mais vermelho e intenso, de um portal para sua alma, benquerendo a entrada de seu amor mais casto. Eu a despiria, a sentaria em meu colo após inúmeras carícias e a deixaria escorrer ali, com alguns delicados espasmos de moça...

Que sequer despida seria pecadora. Não. Arde-me só de pensar. Entre suas pernas com textura de maçãs, a porta ao Paraíso para o pecador que sou, que tudo isso pensa, mas não é corajoso para falar-lhe.

Tornar-me santo pelo seu amor não me cabe; eu mal conseguiria afagar seu cabelo de ébano, trilhas infinitas de obsidianas brilhantes.

Então, que eu esteja vivo para enterrar seu corpo, minha amada Ècatherine. Peço ao Salvador dos homens que esteja vivo, e que depois de morto, eu possa vislumbrá-la antes do sono eterno, para ver sua boca de pétala sorrir para mim ao menos uma vez, diretamente.

Ela virou-se para perto das cruzes do mausoléu, e deve ter visto um vulto assombroso de um amor de fantasia.

Monólogo FúnebreWhere stories live. Discover now