1. PRIMEIRO CONTO: COMO O DIABO GOSTA (Parte 1)

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@JosePedro13

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@JosePedro13


A Lua havia desaparecido, o Céu arroxeado guardava lentamente as últimas estrelas. Tudo estava quase em completo silêncio, com exceção do rangido dos velhos portões de ferro da propriedade. Diante de mim, o descampado alugado pela prefeitura para uma breve temporada do Gran Circo Beline se estendia oscilante no lusco-fusco da madrugada.

Tropecei alguns passos pela grama seca, me perguntando por que vivi com tanto medo por anos. Meus perseguidores não deram as caras durante minha passagem pelos diversos bares da vila atrás de mim - cidade pequena tem mais bar e igreja que residências.

Calafrios me perpassaram a espinha quando três rajadas seguidas de um vento quente varreram o lugar. As tendas - que eu tinha certeza que estavam dobradas em grandes fardos quando saí três horas antes - se erguiam sombrias, as barraquinhas incólumes, barris e brinquedos do show secundário espalhados como se um espetáculo fantasma se realizasse naquele momento.

Algo estava errado. Muito errado.

Cambaleante, arremessei longe a garrafa de uísque falsificado que eu ainda carregava, me deixando cair logo em seguida sobre alguns fardos de capim. Segurei a cabeça, implorando para não ser tarde demais, sabendo que já era tarde demais para afastá-los dali. Dois anos, dez meses e quinze dias sem beber, rir, transar ou mesmo pensar em ter emoções fortes foram por água a baixo em uma única noite de farra nos braços daquele caminhoneiro.

Por onde eu passasse - antes de entrar para o circo - bastava sentir desejo ou ser atacado por uma onda de nostalgia que eles vinham do nada, brotando da minha culpa para transformar o mundo num inferno particular, encenando com tintas mais escuras o julgamento que se realizou por anos toda a vez que eu tocava o travesseiro. Esse foi o preço, me tornar um andarilho, tentando fugir deles, sendo alcançado e revivendo meus piores pesadelos sem poder contar com a ajuda de minhas palavras. Qualquer coisa teria de ser escrita naquele caderno preto.

A consciência da merda que havia feito inundou minha mente como uma tromba d'água. Imagens da minha mãe traindo meu pai, meu pai arrastando a cara dela escada abaixo, os dois seguindo um roteiro que eu escrevi em meu caderno. Minha mente turbilhonava, o mundo girava e o vento trazia os gritos dos meus pais quando descobriram meu novo "poder", o desespero do meu irmão em meio às chamas de um incêndio que não causei, todos que eu amava me caçando como se eu fosse um bicho por ter matado meu irmão.

Maldito caderno, maldito pacto, maldito EU!

Rolei pelo chão, as mãos tampando os ouvidos, mas a voz da culpa vem de dentro, não adianta tentar se ensurdecer. Chorei, gritei, implorei para que aquilo parasse e quando eu achava que não suportaria mais, meus apelos foram ouvidos e gradativamente os sons foram diminuindo até restar somente uma voz gritando.

Trêmulo, abri os olhos e respirei o mais fundo que pude. Os quadrados de lona azuis e brancos estavam quase todos embarcados, dois trabalhadores e uma moça - provavelmente uma prostituta local - corriam em direção ao vagão abandonado no limite do terreno. O mundo novamente entrava em foco, tudo normal: o céu alaranjava com o amanhecer, os sons aumentavam gradativamente, os gritos desesperados de Oyá soavam ao longe...

Uma parte de mim gostaria de estar errado, insistia em dizer que não passava de bobagens, que a Atiradora de Facas estava dormindo àquela hora e só acordaria com o trem balançando suavemente quando cruzasse a entrada da próxima cidade. Outra parte fazia minhas orelhas latejarem, gritando que não adiantava enganar a mim mesmo porque algo terrível aconteceria a minha amiga, caso eu não tomasse uma atitude urgente.

Vasculhei o lugar em busca de socorro.

Nada.

Minhas pernas pesavam como chumbo, o medo enraizando meus pés. Os gritos continuavam agora somados às gargalhadas.

No fim, não foi nem gratidão, nem altruísmo que me levaram a dar uma de super-herói.

Foi o medo de mais uma culpa em meu histórico não tão pequeno. Não aguentaria mais um peso, mais uma sentença martelando na consciência quando eu pusesse a cabeça no travesseiro.

Por causa da adrenalina, despertei subitamente da bebedeira, aproveitando o domínio das pernas para correr até o lugar onde o vagão se encontrava com uma enorme pedra. Um cheiro esquisito e conhecido me queimou o nariz à medida que me aproximei das vozes. Ignorei as imagens que se insinuavam em resposta àquele cheiro curioso, focando minha mente em Oyá e em como salvá-la sem cometer suicídio.

Parei bem próximo, o coração batendo assustadoramente alto nos ouvidos. Ao que parecia, o vagão e a pedra não chegavam a se espremer, formavam uma arapuca em forma de triângulo ao se encontrarem com uma segunda pedra, o espaço vedado com troncos de árvores e mato.

E de lá de dentro saíam as vozes abafadas, risadas e gritos na língua Changana. Chamas crepitavam em algum ponto ali perto.

─ NI TA KUBA! SUCA, PALHAÇO! - gritou a Atiradora de Facas ao perceber minha presença.

─ Chama de coisa mais forte, docinho! - gargalhou um dos homens, seguido de um coro de risadas exageradas.

A raiva por saber o que queriam dela pouco a pouco foi vencendo meu medo. Era hora de enfrentar meus demônios de frente...

... Mais fácil falar do que fazer, minhas pernas se recusaram a colaborar. Tentei controlar a respiração, mas as cenas de um monstro grande, peludo e fedendo a tabaco faziam minha cabeça rodar mais rápido.

Num último ímpeto, limpei a mente e me joguei pelo vão de entrada da arapuca, apanhando um pedaço de pau pelo caminho para me servir de arma. O plano era acertar sorrateiramente um dos trabalhadores, enquanto Oyá atacaria o outro com sua faca, então fugiríamos.

Mas como azar de menos é bobagem, pisei num galho seco e o barulho provavelmente foi ouvido na China.



(...)

Continua

(...)


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