A Voz

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Já se passaram dois ou três meses do início dos acontecimentos. No aniversário dos gêmeos, comprei dois MP3 com gravador de voz. Pode parecer antiguidade agora, onde tudo é movido a internet, mas foi o que as condições financeiras permitiam. Eles realmente gostaram muito, gravaram músicas, mensagens aleatórias, coisas de criança mesmo. Sempre que gravavam algo novo vinham correndo me mostrar. Às vezes, quando saíam e esqueciam o MP3 em casa, eu mesmo gravava uma mensagem dizendo que tomei conta dos aparelhos, e ouvia as coisas que meus filhos gravavam.

Foi em um passeio da escola que começaram as gravações estranhas. Eles esqueceram os gravadores em casa. Nesse dia não chequei as mensagens e músicas. Quando voltaram para casa, ficaram rebeldes. Começaram a brigar e xingar, mas logo se desculpavam. Estranhei. Os dias foram se passando e eles ficando cada vez mais violentos e frios, mesmo que pedissem desculpas. Não faziam birra e coisas de crianças que querem chamar atenção, estava realmente mudados. Outro dia, eles esqueceram novamente os MP3. Fui ouvi-los. Para minha surpresa, não era a voz dos meus filhos, nem de alguma pessoa conhecida. Era uma voz distorcida, como aquelas que usam na televisão para disfarçar as vozes das vítimas. Não aparecia durante toda a gravação. Aquela voz só surgia perto do final, precedida por um som de interferência, e durava apenas uns dois segundos. Ela era baixa e parecia dizer uma palavra curta.

Levei os MP3 para o meu trabalho, pois não temos computador em casa. Colocando no computador do serviço, usei um programa de edição de som. Aumentei a parte da voz estranha, diminuindo um pouco o tempo. Consegui ouvir claramente a palavra "morte". Meu sangue gelou, minha espinha arrepiou e tudo que eu consigo pensar até agora são nos meus filhos. Ainda sinto medo de perdê-los, porém eles ficaram cada vez mais frios, como se tivessem perdendo a alma. Minha esposa diz que não tem nada de errado com as crianças, que elas estão normais e muito calmas. As gravações sempre são como as primeiras, mensagens infantis e aleatórias, contando sobre coisas que aprenderam ou viram, e músicas. Sempre no final de cada gravação tem a interferência e a voz grave.

Há cinco dias quase ocorreu um acidente dentro de casa. Felipe, o mais novo, pegou o isqueiro e ia queimar a cama de Fernando, o mais velho. Ele estava deitado na cama. Poderia ter matado o irmão. Por sorte, minha esposa notou a falta do objeto e foi ver se estava com os meninos. Quando viu o garoto com o isqueiro bem perto da cama, deu uma bronca nele. O mais estranho foi que, quando ela saiu do quarto e eu entrei, Felipe não se importou com a bronca. Parecia que não tinha remorso do que quase fizera. Confortei os meninos e brinquei com eles. Nesse mesmo dia perguntei como minha esposa não notava a diferença e a frieza dos nossos filhos, ainda mais com o que tinha acontecido. Ela parecia ter se esquecido do que aconteceu. Repeti para ela todo o caso, ela ficou confusa. Perguntou se eu havia bebido, pois o isqueiro estava o tempo todo em cima do micro-ondas.

Estou escrevendo tudo isso porque acredito que, das duas, uma: ou eu estou ficando louco, ou minha esposa está tendo Alzheimer. De qualquer forma, precisamos ir ao psiquiatra. O problema é que não temos condições financeiras para isso. Caso alguém encontre essas anotações, se alguma coisa acontecer com minha família, peço que acredite em tudo que está aqui, é a mais pura verdade. Temo que algum dia eu perca meus filhos por culpa da pessoa por trás daquela voz grave, se é que posso chamar de pessoa. Não acredito em coisas sobrenaturais, mas por que alguém pegaria o aparelho dos meus filhos, editaria no computador e então deixasse parecer que tem alguém os perseguindo? Nem mesmo um louco faria isso, me admiro das crianças não terem percebido essas partes ruins no áudio. Ou será que elas perceberam?

Mais uma semana se passou e os gêmeos continuam daquele jeito. Minha esposa diz que estou delirando, mas eu tenho certeza que vi eles trocando tapas! Foi a coisa mais horripilante que vi meus filhos fazerem. Um dava um tapa no rosto do outro, esperava um segundo e retribuía a agressão. Era como se eles estivessem se divertindo com isso. Uma brincadeira de muito mau gosto. Perguntei para o pessoal da escola dos pequenos se eles não tinham notado esse comportamento estranho, e me decepcionei com a resposta. Como ninguém tinha notado essa frieza dos meninos?

A VozWhere stories live. Discover now