Capítulo 4 - Injustiça?

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                                                                                      DANIEL

Caio e eu fugimos do prédio da Militância enquanto eles nos prendiam para a punição de traição, naquele dia. É traição contra Vila América, falarmos de assuntos proibidos. Eu teria ficado calado se soubesse que livros é um assunto proibido, mas fazer o que se eu não sabia o que eram livros?!

Corremos o mais rápidos que podíamos naquela noite, sorte que a escuridão pelas ruas da Região nos ajudava a nos mantermos escondidos nas sombras, enquanto mais de vinte militantes eram chamados para nos seguirem nas redondezas. Todos calados, eretos e de armas prontas em várias direções. Agora entendo a necessidade delas.

Nos esquivamos e fugimos para o Leste, conseguindo abrigo na floresta. Foi assim que conhecemos Abgail e os outros.

Caio já estava como eu na Militância: começando a questionar algumas coisas. O sentido das coisas. Foi assim que descobrimos que todos os militantes são do jeito que são por causa das doses mensais, das pílulas. Só não descobrimos porque, de alguma forma, conseguimos ter lembranças se uma das funções das doses é apagá-las.

Daí veio nossa designação: Renegados. O que antes pensávamos ser o certo começa a se desintegrar. Perder o sentido. Mas isso não acontece com todos. Não são todos os militantes que conseguem ter alguns flashes de memória, caso contrário, teriam arranjado um jeito de fugirem também. Somos considerados "falhas" das doses, militantes ainda nos caçam para o Regente. Somos os únicos acordados nessa cidade, pois achamos que as doses mensais que os civis ganham não tem nada a ver com prevenção de doenças, como falam. A única explicação para as Regiões terem pessoas tão despreocupadas, satisfeitas e felizes é porque elas também não se lembram. Falta alguma coisa. Vivem como zumbis para o Regente, que decide tudo por eles. Há quanto tempo vivemos assim? Porque?

Nosso objetivo é descobrir.

-Você primeiro. -Digo á Marta, que aceita enfim e sobe as escadas para a saída do abrigo.

A luz do dia na floresta faz meus olhos se encherem de água, tampo minha visão com uma das mãos e com a outra escondo nossa entrada com folhas e gravetos cheios de formigas.

-Sabe o caminho? -Pergunto a ela, assim que começamos a caminhada ao norte da floresta. Ela nega com a cabeça. -Tudo bem, não é tão longe.

-Já foi lá muitas vezes? -Me pergunta, segurando as duas canecas fundas de alumínio que Juliana conseguiu semanas atrás.

-Algumas. Acho que virei amigo das vacas. -Sorrio para ela, que desvia o olhar sem jeito, mas também sorrindo.

As vezes sou o escolhido por Abgail - a mais velha de nós, portanto a que decide a maioria das coisas - para pegar um pouco de leite e ovos nas redondezas. Claro, furtivamente, pois é o único jeito que temos.

A Região Leste é cheia de casas de campo, simples e com plantações, gado e pescadores nos rios próximos - de onde pegamos água. Como todos na Colônia, saem despreocupados de suas casas, portas abertas e janelas escancaradas. Já sabemos a rotina de alguns, horários que saem de casa e que o caminho fica livre para pequenos furtos. Como o de hoje.

Olho para Marta de relance, acompanhando meu ritmo entre as árvores espaçadas e brisa leve. Seus cabelos curtos se agitam um pouco com o vento, e me pergunto como ela havia se saído em sua prova de aceitação. É uma garota bonita para uma vida de militante. Rapidamente ela me pega olhando-a, desvio os olhos tarde de mais e sorrimos juntos.

Duologia Renegados - LIVRO UM (Degustação)Where stories live. Discover now