Prólogo: Inquietação

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                                       Venho tendo dificuldade para dormir à noite. Não raro o relógio marca 3 ou 4 da manhã antes que eu finalmente consiga cair em um sono intranquilo, sem sonhos. E, como consequência disso, passo a maior parte dos meus dias fatigado, o que afeta muito a minha produtividade. O fato é que, toda noite quando deito a cabeça no travesseiro, quando o mundo se cala e não há mais distrações, o silêncio parece gritar e ele é ensurdecedor, exige ser ouvido. Minha mente mergulha em um frenesi e os pensamentos vêm e vão em um fluxo aleatório que não me permite entendê-los e tampouco dormir. Tudo isso vem acompanhado de uma mistura de medo, insegurança e ansiedade que tento ignorar, mas eles exigem minha atenção. Me tornei neurótico, e sofro por antecipação. Não vivo o presente por estar tão preocupado com o futuro.

Tive um desses momento de epifania numa manhã nublada de julho.
Eu estava sentado à mesa da sala bebericando café com leite de uma xícara, sem prestar atenção no sabor que tinha, e encarando a parede branca na minha frente, sem realmente a ver. De repente meu cachorro, que estava empertigado aos meus pés, latiu para outro que passava na rua. Tive um sobressalto e acabei derramando café quente em mim. Fui desperto de um sonho acordado e, prontamente, me veio um pensamento tão espontâneo e natural.
"Ai, quente!".
Dor, ela exige ser sentida.
Sentir dor me fez perceber como eu estava perdendo a sensibilidade.
Desatei a chorar, pois o café quente em contato com minha pele me lembrou daquela sensação gostosa, daquela outra coisa que aquece o peito. A alegria. Quando fora a última vez que a sentira? Quando fora a última vez que sentira qualquer coisa? Não conseguia lembrar.

Foi aterrorizante perceber que eu já não chorava, já não ria, já não saía, já não sentia, já não vivia. Mas, se Descartes estava certo, ao menos eu existia, pois pensava, e muito. Na verdade, era escravo dos meus pensamentos.
Existia e não sabia o porquê nem o para que.

Em suma, nada mais me dava prazer ou despertava o meu interesse. Mas a dor conseguiu naquele instante fazer uma pequena rachadura naquela barreira de indiferença que eu havia construído aos poucos para me proteger do mundo. Havia buscado o amor, e encontrara a indiferença; a amizade e fora traído; a verdade e me iludira; um caminho e me perdera; uma identidade e não sabia quem eu era. Expectativas frustradas adoecem a alma e eu chegara ao ponto de escolher a inércia, a apatia e o ócio. Tinha simplesmente perdido a vontade de tentar e deixado de me importar.

"Tanto faz", "Pode ser", "quem sabe?".

Eu me tranquei dentro de mim. Queria e não queria sair, tinha medo do que encontraria do lado de fora, pelo menos ali eu estava seguro. Além disso perdera a chave e me cansara de procurar. Sendo assim, me resignei e decidi esperar que alguém viesse abrir a porta, mas ninguém vinha.
Ninguém tinha a chave.

Corri para o banheiro e fitei meu reflexo no espelho. Pude ver a dor latente na minha expressão.
"Não me sinto eu mesmo. Quem eu sou? "
"Por que dói? "
Me sentia só.
Tinha amigos, mas nenhum muito íntimo. Quando os encontrava, conversávamos apenas sobre trivialidades. Não havia cumplicidade. Lembro de um dos meus aniversários, o grupo da igreja de mamãe veio comemorar e comer bolo, mas, fora alguns "parabéns" e desejos de "Feliz aniversário", eles mal falaram comigo. Mamãe pediu que todos, um por um, dissessem uma qualidade que admiravam em mim. Foi uma chuva de adjetivos vagos, "bom", "legal", "inteligente", "sério", "educado". Mas nada disso era eu. Eu era a pessoa a respeito de quem todos falavam bem, mas que ninguém realmente conhecia.

Sabe, as pessoas são como remédios que causam efeitos colaterais. Elas nos adoecem, mas nos mantém vivos. É preferível viver doente do que morrer. E por essa razão as pessoas são um mal mais do que necessário, vital. Que o medo de ser ferido limitava minhas relações, isso lá era verdade. Não confiava em ninguém, os deixava de fora da minha vida. Mas sempre os mantinha por perto. Perto, mas não dentro.

Continuei olhando. Vi em meus olhos um pedido de socorro silencioso. Percebi o quanto era infeliz. Havia permitido que o medo de morrer, me impedisse de viver.
"Reaja!" "Pra que você vive?"

Eu tinha meu trabalho e os serviços de casa e fazia de tudo para ocupar o meu tempo. Buscava distrações, entretenimento e quando não encontrava, era arrastado de volta a aquele estado de introspecção neurótica. No tempo livre eu sempre lia, ou assistindo TV, ia ao shopping, comprava coisas e achava que isso me fazia feliz. Mas tudo não passava de placebo, uma ilusão que me permiti ter depois de perder todas as outras.
Não queria esquecer como era não ter um estabilizador.

A dor que senti foi a verdade forçando sua entrada na minha barreira de indiferença.
A verdade exige ser vista e sentida.
Desilusão.
A verdade dói e por isso as pessoas vivem de mentiras.
"Vá!"
Mas, pra onde?
"Só vá!"
A chuva caía pesada do lado de fora e não havia guarda-chuva. Fui mesmo assim.
"Eu sinto!"
A chuva fazia minha roupa aderir ao corpo e escorria por minhas mãos. Deixei-a lavar a dor, mas a verdade permanecia. Cedi, deixei-a me despir das ilusões. Quis senti-la, quis sentir algo.
"O que é isto?"
Era a vida
A vida exige ser vivida, mesmo que doa. 

Voltei para casa, tomei um banho e me vesti para ir ao trabalho. Disse a mim mesmo que precisava fazer algo de útil com minha vida, mas ainda estava perdido, trancado dentro de mim. Não sabia que naquele mesmo dia eu encontraria a pessoa que tinha a chave. Alguém que, tanto quanto eu, não sabia quem era, mas que iria me ajudar a descobrir quem sou.

CONTINUA...  

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⏰ Last updated: Jan 24, 2016 ⏰

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