Quem Sou?

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Quem eu sou? - me pergunto

Há muito que já não escrevo um livro. Ainda me lembro da minha primeira máquina de escrever, onde comecei esse ofício. A tinta da fita sujando meus dedos quando precisava trocá-la. Meus sonhos e delírios empilhados com o papel, bem ao meu lado. Hoje só conto histórias. Crio a trama principal, conceitos e resumos. Faço mapas e diagramas, mas não me lembro como era escrever um livro. Crio séries inteiras das quais nunca escreverei uma única linha. Outros escrevem por mim, alguns ainda me deixam ler durante a criação. Aceitam conselhos, discutem idéias, mas não são todos... os contratados mais recentes raramente o fazem.

Nesses livros só as idéias são minhas, mas me faltam o tempo e as palavras. Lembro-me de um tempo, já faz algum tempo, talvez muito tempo, acho até que tempo demais... que um colega começou a publicar livros sob pseudônimo por orientação do editor. Simplesmente ele escrevia demais e fazia concorrência a si mesmo. Hoje meus editores dizem que não escrevo o suficiente e que escrever mais, não interessa o quanto, não seria o suficiente. Por isso preciso de uma equipe. E não são só os livros, mas histórias para jogos, roteiros para filmes, alguém comentou algo sobre um seriado para a TV, mas eu posso ter entendido errado. Meu colega foi cerceado por três livros ao ano, hoje tenho a impressão que três itens com meu nome na capa alcançam ao público... por mês. Quem está consumindo isso tudo? As vezes juro que não entendo para quem estou escrevendo.

Meus leitores, cada vez mais vorazes, exigem produtos com minha assinatura o tempo todo, mal sabem que há 17 anos não leem algo escrito por mim. Às vezes penso que sou uma fraude. Que devia dar uma entrevista acabando logo com tudo isso e me aposentar, aposentar minha marca. No entanto, toda vez que penso nisso algo acontece.

Alguns anos atrás, um evento que eu havia escrito, na ficção, ocorreu na realidade e nos marcou para sempre como nação. Terei dado a idéia? Terei colaborado para o horror que nos assombra? Essa foi a época que estive mais perto de contar tudo. De que, apesar da idéia ter sido minha, eu nunca escrevi aquilo. Que foi outro alguém. Me livrar da culpa que carregava, mas não pude. Meu editor, e amigo de velha data, me convenceu. Outras pessoas já tinham escrito situações semelhantes, e haviam dado entrevistas semelhantes. Muitas pessoas hoje vivem do que eu "produzo". Ele disse que além do mais, não enganamos ninguém. Que meu nome está grande na capa, como uma marca, mas os autores são creditados. Que ganham experiência e voltam ao mercado mais preparados e com um portfólio interessante. Que não havia nada para mim na aposentadoria. Meu orgulho de volta, pensei em silêncio consternado, mas não pude assumir isso na frente dele. Meu amigo de longa data, companheiro nessa jornada, e que já não se encontra mais entre nós.

Ao fim, e ao cabo, um desafio me trouxe de volta. Uma aposta baseada em muito uísque em um jantar. Talvez uísque demais. E agora lhes devo um conto.

Creio que fiz a aposta mais por mim do que por eles, apesar de que alguém de fora, testemunhando a cena, nunca imaginaria isso. Vozes altas, provocações e gargalhadas nos levaram ao saldo da noite. Depois de sagas com milhares de páginas, em um passado remoto, jogos com horas de duração e franquias bem sucedidas no cinema tenho agora 15 páginas para convencer os meus editores que o meu talento ainda está lá. Um deles, o filho do meu agente original. Se o pai dele insistiu para que eu mantivesse os negócios como estavam, o "garoto" certamente era mais ousado. Uma das idéias, ainda a serem avaliadas por que nada daquela noite pode ser levado tão a sério, seria publicar o conto em uma revista de grande tiragem. A revista masculina que publicou um dos meus primeiros contos provavelmente estaria interessada. Publicavam contos com frequência naquela época, ainda continuam publicando até hoje (as fotos a garotada pode pegar na internet).

Escrevi o conto. Escrevi como não escrevia há décadas, com toda a intensidade do meu início de carreira. Toda a minha experiência, cada uma das histórias, contadas e não contadas, condensadas no papel, destiladas em cada palavra, expressas em cada pontuação. Sinto que nunca escrevi tão bem.

Fiz questão de escrever na velha máquina. O dedo sujo de trocar a fita de tinta. Levaram três dias para encontrar uma fita adequada para ela, mas meu nome e sucesso me permitem certas extravagâncias às quais nem recorro com tanta frequência.

A escrita é fluida e não me toma mais que dois dias para concluí-la. Afasto-me do texto por mais dois dias e então reviso. Muito pouco foi alterado nessa releitura. Não é necessário, tudo que há muito quero dizer está lá. Uma sensação incrível toma conta de mim ao fim. Entrego o original revisado para minha assistente digitalizá-lo. Esse original seguiu para o cofre enquanto o e-mail distribuía minha história para meus convivas.

O conto é um sucesso absoluto no grupo. Todos gostaram do resultado. Dois deles contaram ter chorado ao fim. A história comovente afastou qualquer dúvida sobre minha capacidade de produção atual. Infelizmente, tanta poesia em minha prosa, tanto preciosismo em cada letra, pausa e entonação faz com que ela não pareça mais uma das minhas histórias...

Talvez a publique sob pseudônimo. Mas já não sei mais quem eu sou.

Quem Sou?Where stories live. Discover now