{Quarta} - Amizade em Pratos Quebrados

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Ele pegou o prato e seu copo e andou em minha direção sentando-se na minha diagonal.

- Não se desculpe. Na minha família o dia não começa antes que alguns pratos sejam quebrados.

Dei um sorriso e estendi para ele meu prato vazio. Ergui as sobrancelhas fazendo com que ele soubesse o que eu queria dizer.

David pegou o prato ergueu ao seu lado e o soltou. O som da porcelana se estilhaçando no chão foi um tanto musical.

- Você sabe mesmo como acolher seus visitantes.

- Quer quebrar outros?

- O que a Samanta diria?

- Você chama minha tia pelo primeiro nome? - estranhei, havia tanto tempo que a chamava de Sra. Brooks que esquecera que ela tinha outro nome.

- Ela insistiu.

Tirei o bagel de meu prato e o soltei o prato no chão.

- Ela insistiu que eu aceitasse os termos do testamento - peguei o pires sob minha xícara e também deixei que se destruísse no chão - Ela insistiu que eu deixasse uma vida perfeitamente feliz para voltar pra cá.

- Perfeitamente feliz, mas você está aqui.

- E você está chamando ela de Samanta, acho que todos fomos persuadidos - tomei outro gole do chá.

Lá estava. Os olhos brilhantes olhando para mim com expectativa que faziam eu me contorcer por dentro.

- Vamos sair daqui - sugeri me levantando lentamente ainda tentando descobrir o que aquilo significava.

Corri pela casa deixando David para trás e fui até à frente onde um carro preto estava parado. Era o carro que havia levado minha tia a reunião, acho que ela não se importaria se eu pegasse emprestado. Olhei para trás me dando conta de que David não havia me alcançado. 

Quando voltei David estava perdido no meio da caminho.

- Vamos. Tem um lugar que a gente pode ir. Não é muito longe.

---

O pub que aparentava ter cem anos. Tudo havia sido envelhecido, de cadeiras e mesas até as madeiras que cobriam o chão. Era escuro com a pouca iluminação. Haviam livros antigos em algumas estantes, e um pequeno palco estava sempre à disposição de quem quisesse apresentar algo. Quando eu era menor perdi horas naquele lugarzinho não querendo voltar para casa escutando...

- Kenny - o pensamento me soou alto demais.

- O que? - David dizia me fazendo lembrar que ele estava ali.

Olhei para ele assustada como se estivesse fazendo algo incrivelmente errado e tivesse sido descoberta.

- Uhn... Eu... Ehr... - ruídos saiam da minha boca sem que eu conseguisse formar palavras, ou organizar a frase em minha mente.

Eu não sabia o que dizer ou pensar. Ele já havia me visto, estava vindo em minha direção. A pressão em minha mente era tanta que sentia que meu cérebro iria escorrer pelas minhas orelhas a qualquer minuto.

- Aurora - a voz de Kenny chegou aos meus ouvidos tirando por completo minha voz. Abri a boca tentando dizer algo, mas eu só parecia estúpida.

O silêncio perdurou.

- Desculpa - finalmente emiti um som e não era exatamente o que eu tinha planejado.

- Tudo bem. Sua carta foi suficiente - ele dizia me fazendo perceber que, ainda que mal escolhida aquela palavra, ela precisou ser dita.

- David - olhei para ele - Você pode pegar uma bebida?

Ele só balançou a cabeça e saiu deixando eu e Kenny sozinhos.

- Sra. Brooks está em casa? - ele perguntou.

- Por favor, não faz isso - eu pedi reprimindo minha vontade de abraçá-lo só para meramente poder sentir o conforto que só ele conseguia me dar.

- Eu escrevi sobre você. Um mistério.

- Como termina?

- Você pode ler e me dizer.

- Eu adoraria - nesse momento eu já não sabia mais onde estava indo com tudo aquilo, mas centenas de memórias vinham a tona.

- Você não acha que me deve um abraço junto com as suas desculpa, ou ao menos um de "a quanto tempo não nos vemos"?

- Eu não posso. Seria um abraço tão longo que seria constrangedor.

- Mas esse é sempre o melhor.

- Como vai a vida? - pergunto não querendo continuar com a conversa naquele rumo.

- Em resumo? - ele pergunta e eu aceno um sim com a cabeça - a garota que eu amava sumiu me deixando uma carta, mas agora ela está na minha frente falando comigo. Eu poderia dizer que a vida vai bem. 

- Por favor, não vamos fazer isso. Por favor.

- Você continua a mesma, nunca satisfeita.

- Eu não continuo a mesma. Eu estava completamente satisfeita antes de voltar pra cá.

- Você não consegue ver?

Parei um tempo refletindo sobre o que ele havia dito. Kenny sempre foi capaz de fazer entender coisas que eu parecia me negar a enxergar.

- Eu voltei porque eu estava satisfeita - disse seguindo a lógica dele - E eu nunca estou satisfeita. É isso que você quer dizer? - ele acena com a cabeça - Você é um gênio - digo ainda com aquela ideia em mente.

- Na verdade, você sempre foi o gênio. Eu só lia sua genialidade em voz alta. Você não precisava mudar, nunca precisou ir embora. Você sempre foi perfeita para mim, Aurora.

- Eu era uma hipócrita boçal que lia Byron e gastava centenas de libras em festas. Nos perdíamos tardes dormindo, só para a noite perder tempo julgando a sociedade com um cigarro na mão achando que éramos românticos boêmios. Era um ciclo interminável.

- Poético - David comentava ao meu lado estendendo um copo de o que quer que fosse que tinha ali dentro que virei num único gole.

- Quem é você?

- David, eu sou o CFO dela.

- Eu achei que você tinha ido embora para não tomar conta da empresa.

- Eu fui, mas eu não consegui correr rápido o suficiente.

- Você nunca consegue, você sempre deixa o drama te alcançar. É um vicio.

- Não, não é.

Com aquelas palavras, ergui o copo vazio e o soltei deixando-o se espatifar no chão como se aquilo fosse provar um ponto. Não iria, mas lá estava os restos mortais de o que um dia fora um copo.

- Você viu, não é? - Kenny disse olhando para o copo e depois para mim.

- Eu vi - David concordava.

- Até eu vi - digo dando as costas aos dois saindo do pub.

Kenny estava certo. Eu sempre deixava o drama me alcançar. 

Cup of TeaWhere stories live. Discover now