Um

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Eu me tornei um anjo da guarda por acaso.

Bem, na verdade, retiro o que disse. Como eu morri num acidente de carro, tecnicamente me tornei um anjo da guarda por acidente, mas o que eu realmente quero dizer é que eu não deveria ter me tornado um anjo da guarda de jeito nenhum. Tudo aconteceu por engano, quando entrei na fila errada.

Ora, não me interprete mal. Ser um anjo da guarda seria muito legal; o problema é que eu não estava realmente pronta para morrer ainda, embora não ache que alguém esteja. Perdi minha vida apenas duas semanas depois de me formar no ensino médio, que por acaso era o mesmo dia em que faria 18 anos. Que azar!, você deve estar dizendo. Ninguém nunca espera morrer no dia do próprio aniversário.

Enfim, eu estava dirigindo pela autoestrada, seguindo o mesmo trajeto que fazia todos os dias ao voltar para casa do Sliders, o restaurante onde sou... quero dizer... era recepcionista. Bem, o trânsito estava muito bom para uma tarde de sexta-feira e eu dirigia no limite da velocidade, o que provavelmente muito poucos motoristas faziam. Peguei a minha saída e segui na direção do cruzamento onde eu sempre virava à direita. 

Normalmente, eu ficava parada naquele semáforo, que é o mais demorado da cidade e fica vermelho rápido demais, obrigando os motoristas a pararem bem no meio do cruzamento até o trânsito fluir novamente. Mas, não sei como, o semáforo estava verde daquela vez, e eu pensei, "Uau, é meu aniversário, por isso é o meu dia de sorte! Se alguém merece este farol verde, com certeza sou eu".

Acabei descobrindo a ironia do destino.

Comecei a fazer a curva e, assim que dobrei a esquina, aconteceu. Bang! E isso é tudo o que eu sei. Desculpe. A maioria das pessoas adoraria me ouvir contar que a minha vida inteira passou diante dos meus olhos numa fração de segundo, que eu senti meu corpo se chocando contra o airbag, expulsando o ar dos meus pulmões, justo quando meus órgãos internos eram esmagados dentro do abdômen, perfurando a minha aorta, matando-me quase instantaneamente, mas, infelizmente, eu não tenho uma história assim para contar, pois sinceramente não me lembro de nada.

Acho que elas iam querer ouvir sobre o túnel de luz que eu tinha que percorrer, onde todos os meus parentes mortos estavam esperando para me receber do outro lado, mas, lamento, também não tenho uma história assim para contar.

Eu, no entanto, me lembro de uma coisa: a música que estava tocando no rádio. Era da minha banda favorita, o Sendher. Vou vê-los num show na próxima semana. Desculpe. Eu quis dizer que teria ido vê-los num show se não tivesse morrido naquele dia. Obviamente, eu ainda não me adaptei completamente à ideia de estar morta. Mas, de qualquer maneira, Cannon Michaels, o

vocalista mais gato do mundo, começou a cantar o refrão: "Duas noites para dois...", quando o desastre aconteceu, e em seguida eu estava em outro lugar, um lugar inimaginável, e é nesse ponto que começa a minha história alucinante. 

***

— Por aqui, mademoiselle.

Mademoiselle? Está falando comigo? — Apontei o dedo para o peito. Um peito sem batimento cardíaco.

— Sim, por aqui. É hora de se juntar aos outros na fila. — O homenzinho inclinou a cabeça. Estava vestido com roupas de cores brilhantes, que incluíam uma calça de malha justa e uma gola de babados.

— Do que está falando? Não vejo mais ninguém. Onde estou, afinal?

Assim que o homem franziu a testa, três filas de pessoas apareceram na minha frente.

— Você sabe onde está. Agora, por favor, mademoiselle. Pegue o seu lugar na fila. Já sabe para onde ir.

— Mas você não está entendendo. Eu não sei para onde... — No entanto, quando me virei para encarar o homem outra vez, ele já tinha se afastado.

Anjo AmadorOnde histórias criam vida. Descubra agora