Breves ensinamentos

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      O SANGUE nas minhas mãos começou a secar e causar incômodo entre os meus dedos. O que me levou a matar aquele gordo asqueroso nos becos tinha sido a inaceitável forma de agredir mulheres, e fora apenas a segunda pessoa que eu tive as condições para tirar a vida. O primeiro deles foi há não mais do que um ano, no vilarejo mais fechado de Pedra Bruta. O rapaz era um soldado e me prendera com intenções malignas para levar ao seu mestre. Escorreguei pela lateral do seu corpo onde ele me segurava firme com a mão enluvada, porém não o suficiente para eu provocar um distorção no seu pulso com um giro de prontidão que aprendi numa tarde de inverno violento com meu pai. Eu o derrubei num ágil movimento e joguei minha perna contra suas costas. Minhas mãos estavam atadas por um fio de cobre e consegui erguer o joelho esquerdo que foi de encontro ao rosto do homem. Ele se sacudiu e tentou tomar a arma nas mãos, mas com a ajuda da minha altura tomei coragem e o cabeceei no peito. Ele retornou ao chão num baque surdo e violento, cuspindo gosmas sangrentas e sufocando. A cabeçada tinha sido forte demais, eu sentia. Parecia ter quebrado meu crânio e parte da caixa torácica dele. Então eu fugi quando o homem não mais se mecheu de tanto sufocar com o próprio sangue.
Então fugi e me soltei algum tempo depois quando encontrei um pedaço de ferro pontudo que saía de um tubo de maquinaria e com habilidade cortei o cobre.
Essas foram as duas vezes que matara um homem. Porque me sentia inseguro de alguma forma. Antes tinham meus pais para me proteger. Hoje não mais. Estou sozinho. Seria impossível e inadmissível eu fazê-lo quando eles eram vivos.

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       Atravessei a cidade durante a madrugada à procura de um canto mais confortável que eu pudesse recostar minha cabeça e esticar meu corpo para dormir. Encontrei um lavatório improvisado de pássaros acima de uma montanha de rodas quebradas que carroceiros largavam. Me apertei entre dois postes quando um carroceiro atravessou a rua, deixando o cavalo do outro lado. O cavalo não era maior do que os que eu já vira passar todos os dias pelas ruas de Pedra Bruta, esse era quase um potro, porém sua crina era de uma beleza inestimável. Ela descia pelo seu pescoço num suave movimento de leveza, brilhando sob o brilho da luz dos postes.
      Então o carroceiro jogou três rodas quebradas no monte de outras rodas na esquina, limpou as mãos na blusa de couro e retornou à carroça. Fiquei pensando e de olho nas três rodas que ele descartou, imaginando o prejuízo para alguém comprar rodas de madeira lustrada e com ferro aliandês nos aros modernos. E daí pensei que o carroceiro poderia estar retornando de uma viagem de semanas ou até meses pelas estradas de outras regiões e ter levado rodas reservas por que as que tinha teriam quebrado no meio do caminho.
      Continuei a olhar atentamente para os lados, mesmo sabendo que a possibilidade de aparecer alguém durante a madrugada naquelas ruas seria menor do que o sol aparecer em instantes.
     Subi no monte de rodas e mergulhei minhas mãos no lavatório de pássaros. Esfreguei dedo por dedo e o sangue seco foi saindo aos poucos. Não tinha anéis ou qualquer acessório parecido nas mãos, e isso amainou meu trabalho.
      Só quando desci o monte de rodas, já com as mãos limpas, que notei que nunca tinha atravessado aquele beco, por mais que já tivesse estado uma dezena de vezes naquela parte da cidade.
      Meus passos seguiram pelo lado contrário ao tentar localizar um abrigo confortável. Me vi em condições mais severas do que ontem, quando meu estômago estava mais forrado de alimento do que hoje.
     Encontrei um filtro de luz que perpassou um varal vindo de uma casa. Analisei friamente o filtro e passo por passo eu me aproximei furtivamente da casa. Ela tinha janelas baixas e a fachada simples. Era uma das residências mais simpáticas que eu já havia visto, levando em conta minha observação severa.
      Eu tinha quinze anos e não era nem de longe um geminiano. Os Geminianos são ladrões criados e habilidosos, que conseguem cercar hotéis guardados no meio da noite e roubar o colar precioso de uma dama da corte, conseguem se arrastar como cobras por esgotos e sair em tubos de ventilação no interior de uma loja de penhores e sairem ilesos. Eu sou um capricorniano, o que me faz ser apenas um pobre garoto que vive em meio a bêbados e prostitutas (em maiores casos) e que todos reconhecem como sujo, às vezes, violento quando é para ser.
        Meus dedos tocaram a janela e eu espiei a parte de dentro. No interior tinham almofadas e uma lareira, uma mesa e algumas cadeiras de madeira bem simples. A luz das chamas iluminavam apenas uma parte do ambiente, o que deixava o restante do espaço um breu total. Me assustei com uma ratazana passando sobre meus pés. Dei um passo atrás e me aproximei novamente. Dessa vez vi uma pessoa inclinar-se sobre a mesa e arrumar algumas garrafas com bebidas. O homem era velho e notou quando eu me aproximei da vidraça a ponto de tocá-la com meu nariz. Ele pareceu muito mais quando se aproximou, refletindo as rugas profundas ao redor dos olhos, nas bochechas e testa, além de apresentar uma barba grisalha na altura do peito.
     Tentei correr, mas o velho homem abriu a porta e me convidou a entrar com um gesto simples das mãos.
- Está frio, garoto. Não sente? Não o deixarei aí fora! - então eu entrei, meio recuando, meio impulsionando meus pés contra a minha vontade.

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       A primeira noite fui servido de um belo prato de legumes refogados e carne de pato. O velho homem me falou que seu nome era Duqh e que me recepcionou porque não queria passar mais um dia sendo só um velho solitário morrendo.
       Então aí começou realmente minha caminhada pelo aprendizado. Quando meu pai era vivo ele havia me contado por diversas vezes nas noites de luar belo que há muito tempo os capricornianos tinham poder sobre si mesmos mais do que exigia o próprio corpo. Haviam capricornianos que trocavam de corpo como quem troca de roupa, que eram verdadeiros heróis em tempos passados.
       Duqh me fizera ter algumas horas todos os dias de breves ensinamentos. Ele tinha sido um capricorniano de renome no passado, só que agora se escondia como um coelho foge de serpentes.
     Me ensinou a conduzir com elegância minhas habilidades na primeira semana. Na segunda semana tentou me fazer acreditar que eu podia evocar a habilidade de ser outra pessoa. Sentir-se na pele de um marinheiro, de um bêbado ou até mesmo de uma prostituta. Ou até mais! Na pele no próprio governante. Mas esse último ele relutou em me ensinar.
      O primeiro mês que convivi com Duqh foi após muito tempo um dos que me senti ter recuperado o amor pela minha família. Aquele amor que cresce no estômago e esmaga o peito de uma forma boa, causando sorrisos espontâneos durante o dia todo.
      No segundo mês Duqh continuava a me ensinar como ser alguém que não somos. A como imaginar que nossa pele não é nossa pele. Que nosso cabelo não é nosso cabelo. Que nossos olhos não são nossos olhos.
- Qual cor são seus olhos? - perguntava ele.
- Azuis. - dizia eu.
- Qual cor são seus olhos? - voltava a fazer a questão.
- Azuis. - insistia em responder.
- Quem você é? - perguntava.
- Anaen, proprietário do bar de léguas. - lembrei-me, memorizando o rosto do homem carrancudo do bar da esquina.
- Qual cor são seus olhos? - voltava a perguntar.
- Negros. - eu respondia, lembrando da íris escura feito carvão de Anaen.
- Qual cor são seus olhos? - perguntou novamente, com a voz em tom mordaz e o cenho franzido. Então compreendi e o dei a resposta:
- Negros, como os longos cabelos de Enette, a prostituta, porém meio-cinza em dias de verão intenso quando lacrimeja em excesso.
      Duqh me sorriu e se retirou a passos leves. Eu permaneci abrindo e fechando os meus olhos azuis. Deixei de ser Anaen por um minuto para voltar a ser eu mesmo. O velho Zagkri, capricorniano.
      O jornal sobre a mesa revelava que as decisões para quem entra na Sede iriam iniciar. Os jovens de quinze anos começavam o primeiro ano na Sede. Para mim eram jovens ricos e poderosos. Eu era apenas um garoto órfão que vivia em becos da cidade procurando comida e me escondendo de ladrões e aproveitadores baratos. E era capricorniano. Mais um motivo para esquecer de entrar naquele lugar. Os olheiros nunca decidiriam me levar no único ano que poderia entrar para a Sede. Ninguém sabia quem seriam os tais olheiros, porém eles decidiam tudo. A palavra final era deles.
      Enquanto isso eu deveria tirar esse pensamento da minha mente e seguir minha trajetória nos becos da cidade e sendo aprendiz das palavras de Duqh. Não tinha escolhas.
- O que você é? - a voz de Duqh apareceu um minuto depois novamente.
    Pensei por alguns segundos e falei:
- Déria, prostituta do bordel de Fantana. Gosto de beber rum nobre de marinheiros e dançar nas terças para mercenários que pagam caro pelos meus olhos verdes e meus seios fartos. - respondi, com o máximo de confiança em minhas palavras. Tive a sensação do meu cabelo crescendo e meu corpo se delineando.
      Então, sem mais nenhuma pergunta, Duqh deu um sorriso ainda mais aberto que o primeiro, satisfeito. Por ora.
     
    

Capricorniano, a lenda da sombraWaar verhalen tot leven komen. Ontdek het nu