TRÊS

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Às vezes a verdade pode ser tão enganadora quanto uma mentira. Lembre-se disto, sempre. E tenha certeza de que não está presa na teia de um enganador.

Acordei com o gosto de cinzas na boca, de novo. Minha mão estava latejando e todo o meu corpo doía. E já havia passado de meio dia, se a luz forte no meu quarto servia de indicação. Com um grunhido de dor, rolei na cama, parando quando quase caí. Já estava machucada o suficiente, não precisava acrescentar mais nada. Algo brilhou do outro lado da cama, e nem me surpreendi quando vi a adaga. Um pedaço de pano sujo ainda cobria o cabo, mas não escondia muito na luz do dia. Eu precisaria arrumar uma forma de cobrir aquelas pedras preciosas. Por algum motivo nem passou pela minha cabeça pedir para as sombras esconderem a adaga de novo.

Me levantei, usando alguns exercícios que Lisara tinha me ensinado para tentar relaxar meus músculos tensos. Todo o meu corpo gritava em protesto, mas não podia só me deitar e esperar até estar recuperada. E tinha passado por bem pior que aquilo quando era mais jovem.

Minhas roupas estavam arruinadas, e eu as joguei para um canto, mal percebendo quando as sombras as engoliram. Lentamente, examinei meu corpo. Várias manchas escuras e amareladas estavam espalhadas pela minha barriga e pelas minhas pernas e podia sentir alguns arranhões profundos nas minhas costas. Asselya provavelmente os limpara depois que eu tinha adormecido, já que eles não ardiam tanto quanto deveriam.

E aquilo trouxe de volta as memórias da noite insana. As sombras tinham levado todos para a casa principal da gangue de Luka, onde Asselya já estava esperando, junto com mais algumas pessoas que eram boas o bastante para ajudá-la. De acordo com ela, as sombras haviam desaparecido do Nilue por algum tempo, atravessando a muralha, e ela aproveitara o tempo para chamar todos os que poderiam ajudar. Para nossa sorte, ninguém tinha nenhum osso quebrado, já que mercadoria quebrada não conseguia um preço tão alto, mas todos estavam feridos. Quase quarenta de nós, a maioria passando mal por causa da viagem pelas sombras, e Asselya tinha precisado se virar para cuidar de todos.

Peguei outra calça de couro, essa um pouco justa demais, e uma túnica verde clara com mangas longas. Algo que qualquer um no Nilue usaria, e que escondia quase todos os meus ferimentos. Tinha acabado de me vestir quando Asselya abriu a porta, lançando um olhar para dentro do quarto.

- Finalmente. Seu amigo bruxo acabou de acordar, também. - ela falou, e precisei de um segundo para entender o que queria dizer.

- Selir está aqui?

Ela assentiu.

- Não se lembra? Ele estava exausto demais para ir para casa. Você trouxe ele para cá.

Fechei os olhos, tentando me lembrar. Estávamos os dois exaustos, mas a casa da gangue estava cheia demais e ninguém podia sair durante a noite. Eu tinha pedido Asselya para nos guiar depois que Selir desenhara o símbolo de proteção na sua mão, e pedi para que as sombras os ignorassem.

- Vamos precisar de vocês dois. - ela completou, saindo do meu quarto.

***

- O Rei sempre respeitou o Nilue, e deixou que a cidade das sombras crescesse ao redor das nossas muralhas. Mas Delarna foi atacada noite passada. Vinte e sete membros da Guarda Real foram mortos em serviço, enquanto prendiam um grupo de ladrões. Isto é apenas um aviso. Lembrem-se disto da próxima vez que alguém decidir usar as sombras como uma arma. O Rei não vai tolerar assassinato dentro das muralhas de Delarna.

As palavras do arauto se espalharam, perfeitamente audíveis mesmo à distância. Algum tipo de feitiço, provavelmente. Estávamos no alto da muralha, de novo, mas desta vez mais perto do portão leste. A convocação do Rei tinha chegado cedo e as pessoas a haviam espalhado como o veneno que era.

Nilue (Degustação)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora