- Bom dia, atrasada. A diretora pediu para te acordar. Hoje você está na escala de lavar o pátio. - Ela deixa o recado e vai embora. Lúcia nunca foi muito de bater papo.

Levanto-me e, depois de me vestir, prendo os cabelos ruivos de forma bem firme e me dirijo para o pátio. O restante das meninas já deve ter começado, penso.

No caminho, passo pela sala da diretora, que está abrindo a porta para que as meninas que vi no meu sonho saiam de sua sala. A diretora me encara, me fuzilando com seus olhos por um momento e, em seguida, acena com a mão me chamando. Sigo até ela e as meninas saem correndo para seus afazeres, evitando me olhar.

- Bom dia, Sophia.

- Ótimo dia - respondo a minha nada amigável diretora.

- Quero que você me explique o que foi aquilo - diz a bruxa, e eu não sei o que responder.

Lembro que, no meu sonho, eu estava fora do orfanato e via algumas garotas tentando sair, e assim que elas me viram eu acordei.

- As meninas disseram que você estava fora do orfanato, e você sabe que ninguém pode sair daqui sem permissão.

- Dona Marie, eu não sei do que elas estão falando. Eu nunca sai daqui sem sua permissão.

- Não minta para mim! Por qual razão as garotas mentiriam?

- Eu não sei, droga! Você não se pergunta como elas "me viram"? - digo fazendo aspas com as mãos - Onde elas estavam na hora?

- Como ousa me interrogar? Elas já me disseram o que importa - Dona Marie parece perplexa e revoltada. - Você irá ajudar a lavar os banheiros depois do pátio para aprender a se comportar e a não mentir.

Levanto bufando e bato a porta.

Como eu odeio esse lugar.

Depois da grande guerra o mundo virou de cabeça pra baixo, quase todo o mundo foi aniquilado pelas bombas nucleares e os humanos lutaram para conseguir sobreviver.

Foi criada a OCRV para cuidar da distribuição de mantimentos para o mundo todo, e ela ajuda também alguns orfanatos, como esse que moro. É pequeno, com apenas 15 meninas, e a maioria de nós não sabe de onde veio, apenas esteve aqui desde bebê.

A diretora é escolhida pelo governo e cuida de nossa saúde e educação, e ela sempre diz não ter acesso a nenhuma informação sobre nossos pais ou família. Não sei se existem muitos outros orfanatos, pois praticamente não temos acesso a informação de fora, apenas rumores de conversas entre os homens que trazem os mantimentos.

Então, vivemos juntas aqui, dividindo rigorosamente os alimentos recebidos a cada quinzena, cada vez menos, e ocupando nossas mentes com os livros da biblioteca e sonhando em atingir a maioridade e sair daqui para explorar o que sobrou do mundo.

Na maior parte do tempo me sinto igual a qualquer uma das meninas daqui, porém coisas estranhas acontecem, como esse sonho.

Qual o sentido disso tudo? Elas me viram como se eu realmente estivesse lá fora, mas eu acordei na minha cama, como sempre.

E agora tenho que lavar banheiros. Que ótimo.

- Sophia, espere!

Olho para trás e me deparo com minha diretora correndo feito louca em minha direção.

- O que foi?

- Venha comigo. Algumas pessoas ligaram e estão a caminho para te ver - ela responde, pálida.

Vladmir Gregorovitch - São Petesburgo, Rússia

Na penumbra daquela manhã, o sol machucava os meus olhos.

- Maldição. Vai começar outro dia.

Como se alguém pudesse me escutar. Quantos dias fazem desde a última vez que eu vi alguém? 200? Um pouco mais? Não faz diferença, pois não sinto saudade de conversar com ninguém. Deve ser muito chato alguém cobrar comportamento de você.

Ah, é.

Rotina.

Faço isso pra não me esquecer. Um exercício mental.

Eu sou Vladmir. Meu sobrenome? Tanto faz, nunca fez nenhuma diferença. Moro em São Petesburgo, atualmente no topo do que sobrou da Catedral do Sangue Derramado.

Mais do que nunca ela merece esse nome. Depois da guerra, isso aqui virou uma cidade abandonada, porque os abutres sempre estão por perto para comer os cadáveres.

A catedral, um dos poucos prédios que ainda estão de pé, também serve como esconderijo para as poucas vezes que tenho que fugir de alguma coisa.

O que eu tenho aqui? Alguns materiais de primeiros socorros, cobertores, os panos que chamo de roupas e que me impedem de congelar lá fora, um rádio amador que não funciona mais, minhas armas, um rifle velho com um escopo avariado e um revólver, minhas melhores garantias de segurança.

Por que eu continuo vivo? Por que eu não desisto logo?

Bom, talvez outro dia eu desista, mas hoje preciso comer.

Desci da torre aos tropeços e, de algum modo, consegui chegar ao saguão sem ferimentos. Quanto tempo faz desde a última vez que saí para procurar comida? Três dias, eu acho.

Sempre levo o revólver comigo, pois nunca se sabe.

Após uma hora andando pelas ruas da cidade, achei um pássaro morto no chão. Como parece fresco, acho que vou assar e comê-lo hoje no jantar.

Algumas ruas no caminho de volta me trazem lembranças ruins. Um beco onde fui encurralado por soldados que me bateram quase até a morte, uma avenida onde vi meus dois únicos amigos no mundo serem queimados vivos, e, finalmente, a praça onde eu perdi a minha irmã, a única família que eu conheci na minha vida inteira.

Por que eu continuo vivo?

Essa pergunta acompanha minha caminhada pela cidade, quando escuto uma coisa diferente, uma coisa que não escuto há muito tempo: passos de outras pessoas.

O que elas vieram fazer aqui?

Vão me machucar?

Quando dou por mim, estou com o revólver em punho e engatilhado.

Quando as duas pessoas aparecem, vejo que estão com um tipo de uniforme, e, quando vêem que aponto minha arma para elas, apontam as suas armas modernas para mim.

- Parado! - grita o soldado. - Você é Vladmir?

- Isso não é da sua conta! - respondo. - Vão embora!

O som da minha própria voz gritando me parece estranha.

- Garoto -, gritou o outro soldado - Você vem conosco. Por bem ou por mal.

- Não quero ir - retruco. E atiro.

O tiro acerta na perna de um dos soldados e, antes que o outro consiga mirar em mim, faço a arma dele ficar pesada demais e ele a solta no chão.

Como? Consigo fazer isso há bastante tempo. É só eu desejar que uma coisa fique pesada ou leve que ela fica.

Mas dá uma dor de cabeça tremenda, então saio correndo, porque não posso fazer isso de novo.

Quando viro duas ruas e paro para descansar, achando que os despistei, sinto uma coisa penetrar na minha pele e começo a me debater.

Conheço essa sensação muito bem.

Estou sendo eletrocutado.

A última coisa que me lembro antes de apagar é dos soldados me algemando.

Por que eu continuo vivo?

InfectedWhere stories live. Discover now