2. A grama do vizinho é sempre mais verde

77.7K 6.8K 1.9K
                                    


Vendi tudo o que eu tinha. Não era muita coisa, mas eu não podia me dar ao luxo de simplesmente abandonar meus cacarecos, como se eles não valessem um vintém.

Meu sofá de segunda mão todo esfolado (estava tão acabado que poderia ser de terceira, quarta ou quinta mão), que tinha me acompanhado por quatro anos e visto tanta coisa (sim, sua mente poluída, muito sexo incluído), me lançou um olhar recriminador, mas tive que me desfazer dele também. Vendi até a minha cama de solteiro, o fogão velho de quatro bocas e minha geladeira mais-pra-lá-que-pra-cá. Passei tudo no cobre.

Foi triste me despedir do meu fusquinha azul. Até chorei (foi um momento emocionante de despedida, tá? O bichinho era sucata, mas tinha seu valor. Dá um desconto!).

No fim das contas, nem precisei do dinheiro da minha tia-avó para me livrar das dívidas.

Compareci em juízo com um daqueles advogados "gratuitos" e depositei o valor dos aluguéis atrasados (até sobrou um dinheirinho! Mesmo depois de comprar a passagem de ônibus). Entreguei o imóvel (aquele cubículo nem deveria ser chamado de imóvel!) e, depois de vender tudo o que era meu (menos as roupas e o violão, claro), joguei meus itens pessoais na minha desgastada mala preta de rodinhas (minha inseparável edição de Orgulho e Preconceito foi junto), pendurei meu violão nas costas e parti. Deixei a minha cidade natal e entrei no ônibus que me levaria a uma vida diferente.

Quando pisei no solo da minha nova cidade pela primeira vez eu estava exausta. A viagem durou treze horas. Passei frio à noite, porque não levei cobertor (eu só tinha um, na verdade. Era praticamente novo, mas, como ocuparia muito espaço e, definitivamente, não cabia na mala pequena, acabei doando para a minha única vizinha gentil, que até tinha me dado uma xícara de açúcar uma vez).

Entrei no banheiro da rodoviária para avaliar a minha situação estética. Levei um susto. Provavelmente, eu tinha esfregado demais o cocuruto no encosto do banco durante a madrugada. Meu cabelo castanho-escuro (estou falando de um nível indiano de escuro, embora eu não tenha parentesco com indianos) estava caoticamente desgrenhado. Os fios lisos, ligeiramente ondulados, emaranhavam-se em um espesso ninho de ratos no meio da minha cabeça.

Meus olhos (são castanho-esverdeados) estavam meio inchados e, obviamente, eu parecia um panda, porque, veja bem, a "gênia" aqui dormiu de rímel e o bendito não era à prova d'água.

Tentei melhorar a minha aparência com um pente de plástico e tufos de papel higiênico úmido. Não entrei Olívia e saí Gisele, mas acho que consegui dar uma boa melhorada.

Depois disso, peguei um táxi (a corrida foi um assalto!). O motorista me deixou no meu novo endereço: Rua das Cerejeiras, nº 69, bairro Nova Estrela.

A rua era maravilhosa! Toda ladeada por cerejeiras em flor! Parecia um reino encantado. Fiquei admirando as flores cor-de-rosa pela janela até que o carro parou de frente à minha nova casa.

Uau! Era estupenda! Eu esperaria algo como a casa ao lado, que era de dois pavimentos, mas bastante antiga. Tinha seu charme, principalmente porque era de um tom bem clarinho de rosa, que combinava à perfeição com a cerejeira linda da porta! Mas a minha casa nova era uma mansão! Toda branca e moderna, com um portão enorme de grade, daqueles de novela. E tinha ciprestes, palmeiras e pinheiros altos, e um jardim espetacular na entrada. E, meu Deus do céu, um carrão na garagem! Era um bicho tão massa que eu nem sabia dizer o modelo. Devia até ser importado. Nem pude acreditar! Por que o advogado não falara nada sobre aquela máquina maravilhosa? Era minha!

Há poucos dias eu possuía um velho fusquinha azul! Que upgrade! Já podia sentir o vento nos cabelos e o acelerador nos pés. Eu daria uma volta de vidros abertos na rodovia ouvindo e cantando Sia assim que pudesse!

O Devasso Mora Ao Lado [DEGUSTAÇÃO]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora