Capítulo 03

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Ao chegar em casa, deparei-me com a minha mãe em silenciosos prantos. Nossa casa não é grande ou espaçosa, mas o suficiente para disfarçar a tristeza de uma figura materna. Aproximei-me por trás dela e abracei-a repentinamente. Ela assustou-se, a ponto de soltar um gritinho.
- Não chora, Dona Teryz, tá tudo bem. - tentei consolá-la da melhor maneira possível.
- Não estou chorando, seu engraçadinho, e já falei: nada de sustos. - ela tentou impor autoridade, mas seu jeito calmo transmitiu a mensagem como um conselho. - Você sabe que eu sempre sofro no dia de Colheita.
Não só ela, mas toda a população de Panem, todos os 12 distritos sofrem. Com exceção da Capital, que apenas se diverte com a nossa matança. E, quanto mais necessidades você passa, mais sujeito a ser sorteado será - por causa das tésseras.
- Calma, mamãe. Pelo menos, a Anne já tem 18 anos, seu último ano como candidata aos jogos. - não sei se isso realmente serviu de consolo.
- Você tem razão: precisamos de otimismo nesta casa! - suponho que ela ignorou o mar de otimismo que minha irmã abriga consigo, em relação ao Max e ao desenvolvimento Tecnológico da nação; "Você verá, Thony, como o Max ainda revolucionará Panem!",  Anne sempre dizia.
- Mãe, um pouco de otimismo encoraja; muito otimismo nos ilude. O que realmente precisamos é ser realistas. Anne tem seu nome inscrito 18 vezes, mas já é seu último ano. Ainda tenho 15 anos, mas meu nome só está lá 4 vezes, já que nunca precisei de tésseras. Podemos ser realistas, mesmo vendo o lado bom das situações. - espero que dessa vez tenha servido de consolo.
- Não sei o que é pior: minha filha com 18 chances de ser sorteada ou meu filho com mais quatro anos de colheita. - seu ar de preocupação confirmou que sou péssimo em consolos.
- Mãe, vou lá tomar banho. Anne vai almoçar no Centro; ela disse que vai trabalhar, até a hora da Colheita, no Max. - saio, sentindo-me o pior filho do mundo.
Encho a banheira e tomo um banho frio. Nunca tomei banho com água corrente, exceto com a da pia; mas já vi chuveiros pessoalmente no CT. No entanto, somente quem é da Área de Testes que tem o luxo de usá-lo. Enxugo-me e visto uma roupa limpa: cueca preta, calça jeans azul, blusa marrom de manga e sapatos. Sinto o cheiro de galinha cozida daqui do banheiro, então resolvo almoçar logo, afinal, já são 11:30 e a Colheita começa às 13:00.
Almoço junto a minha mãe, parando a cada cinco minutos para consolá-la. Já estou menos tenso como estava no início do dia, mas o nervosismo piora à medida que lágrimas escorrem do rosto dela. Às 12:30, já terminei de almoçar e de arrumar o pouco que tenho no meu quarto. Minha cama de solteiro com um edredom verde cobrindo-a, a cômoda que abriga poucas peças de roupa de que disponho, minha mesa de madeira desgastada com alguns livros da escola e protótipos para o Centro Tecnológico. Dirijo-me à sala e vejo minha mãe, quase em depressão, sentada no sofá. Deve ser muito ruim para ela ver seus dois filhos sujeitos a uma matança. Sinto-me triste, mas dessa vez não é pela minha situação, mas pelo sofrimento dela.
Todos a conhecem pelo seu jeito doce de ser, pela generosidade e pelo amor que nela habitam. Mesmo quando meu pai suicidou-se, Teryz não desistiu da sua vida, dos seus filhos. Criou-nos com muito amor e carinho. Eu realmente a amo. Corro para os seus braços e dou, talvez, o abraço mais verdadeiro que já dei em alguém.
- Vai ficar tudo bem, mãe, vai ficar tudo bem... - sussurro em seu ouvido enquanto acaricio suas costas, consolando-a desta vez.
Ela se levanta, sem falar nada, beija minha testa e segura minha mão.
-Vamos. - uma resposta tão firme, que nem pareceu Dona Teryz Rossful falando.
Andamos em direção à praça; são 12:50. O local já abriga quase toda a população do Distrito, enquanto muitos outros chegam. Abraço minha mãe bem forte e beijo-a na bochecha, sua expressão se derretendo ao receber meu gesto de carinho.
- Te amo muito! Nos vemos depois da Colheita. - digo com firmeza, e aproximo-me da fila dos candidatos a tributo masculino que, de um em um, têm seu dedo perfurado por uma canetinha, para que seu DNA confirme sua presença. Os responsáveis por garantir a presença de todos na cerimônia são os pacificadores, policiais que usam roupas brancas e garantem a segurança de toda Panem, menos na Arena, claro, onde praticamente tudo é permitido para que a Capital tenha um bom show. Eles ficam numa mesa em frente à fila de jovens e detectam o DNA das células sanguíneas com uma maquininha estranha, cuja mini tela exprime seu nome e sua presença é confirmada.
Quando chega a minha vez, um pacificador fura meu indicador e detecta meu material genético; senti uma leve pontada. Meu nome aparece na telinha, e sou liberado para seguir em frente. Caminho até a parte masculina - a praça foi dividida por umas fitas pretas que se estendem por bastões brancos de cerca de um metro, dividindo o local em três espaços: esquerda, onde os meninos ficam; direita, a parte feminina, e um lugar atrás para onde vão pais e outros adultos que não são candidatos.
Posiciono-me na ala masculina e olho para o lado, avistando a minha irmã de longe. De repente, aparece no palco montado na praça uma mulher com um cabelo ondulado e roxo, vestido de botões de rosas artificiais - perceptíveis por causa das cores variadas: pelo menos três para cada pétala - e com um salto alto coberto por cordas douradas. Ela bate três vezes no microfone e começa a falar:
- Bem vindos, jovens queridos. É com muito orgulho que inicio a cerimônia de Colheita da quinquagésima sexta edição dos jogos vorazes. Antes, um filminho trazido especialmente da capital.
O telão improvisado no palco acende, e cenas de guerra são transmitidas, enquanto fala a voz de fundo do nosso presidente, Coriolanus Snow, "Guerra, uma guerra terrível. Viúvas, órfãos, crianças sem mãe. Treze distritos se rebelaram contra o país que os amavam, que os alimentavam, que os protegiam. Irmão contra irmão, até não sobrar nada. Então veio a paz, luta difícil, vitória lenta. O povo se reergueu das cinzas, e uma nova era começou. Mas a liberdade tem seu preço; quando os traidores foram derrotados, juramos como uma nação que não veríamos mais essa traição de novo. Então foi decretado que cada um dos vários Distritos de Panem ofereceriam como tributo um garoto e uma garota para lutarem até a morte em uma demonstração de honra, coragem e sacrifício. E o único vitorioso, banhado em riquezas, serviria como lembrança de nossa generosidade e de nossa clemência. É assim que lembramos nosso passado. E é assim que guardamos nosso futuro".
Mas que generosa essa Capital. Sorteia jovens entre 12 e 18 anos, de cada um dos 12 distritos, para se matarem até só um sobreviver.
- Eu amo esse filme! - afirmou a mulher, batendo palminhas. - agora vamos ao sorteio dos tributos. Primeiro as donzelas. - caminhou até um pote esférico, com uma abertura na parte superior e cheio de papeizinhos, e enfiou sua mão lá dentro, escolhendo um aleatório. Caminhou de volta ao microfone, abriu o papel e leu o nome:
- Gyovanne Tugsten.
Sinto um calor horrível percorrer-me, como se estivessem me queimando vivo. Uma ânsia demoníaca, um desespero arrebatador. Olho para o lado, e vejo Gyo, a pequena garota, fofinha e um doce, caminhar em direção ao palco. Mas algo inesperado acontece: minha irmã, com um gesto de loucura e de coragem, não sei descrever exatamente, corre em direção à Gyo e grita:
- Eu me voluntario como tributo feminino!
Ela agarra a menininha, que grita e chora desesperadamente, e entrega ao primeiro pacificador, o qual a carrega de volta à ala feminina, enquanto Anne, com a cara apavorada, sobe as escadas e se posiciona ao lado da mulher da capital, que está supresa e encantada ao mesmo tempo.
A moça fala:
- Qual o seu nome, querida?
- Anne Rossful. - o desespero tomava conta dela.
- Admiro seu ato de bravura! O que a garotinha é sua? Irmã? Prima?
- Aluna. - minha irmã queria sair correndo e fugir dali, tentar escapar da morte eminente, isso era bem perceptível.
- Oh. - misericórdia escapou de sua voz - Agora, o tributo masculino! - ela faz o mesmo procedimento para sortear o papel, voltou ao microfone e leu:
- Thony Rossful.
Olho rapidamente para trás e vejo minha mãe chorando, gritando, enquanto eu caminho para o palco. Senti-me muito pior, o pior sentimento da minha vida. Chamas me consumiam, o medo invadindo-me. Estou desesperado, destruído; pior que isso, estou morto por dentro. Não sinto mais nada, o vazio me ocupa, ao mesmo tempo em que estou consumido por labaredas de fogo eternas. Posiciono-me ao lado da moça da capital, quando vejo todos que estão nos vendo beijando os três dedos médios da mão esquerda e levantando-os para o alto. Isso é um gesto de admiração, de respeito.
De repente, minha mãe corre em direção ao palco, empurrando pacificadores, gritando e chorando.
Cinco pacificadores correm atrás dela, enquanto eu minha irmã somos escoltados para longe:
- Preciso me despedir! Preciso me despedir! Mãe! - minha irmã chora e empurra os homens que nos seguram, enquanto faço o mesmo, mas não adianta de nada.
Olho para trás e vejo minha mãe, posta de joelhos à força no palco, e um pacificador aponta uma arma para a sua cabeça, aperta o gatilho e atira uma, duas, três vezes, até ela cair no chão, inconsciente. Morta.

Jogos Vorazes 56ª EdiçãoWo Geschichten leben. Entdecke jetzt