Prólogo

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A noite chorava.

As lágrimas tão frias quanto a neve numa manhã de inverno.

Ou ao menos, era assim que ela gostava de imaginar.

Katrina encolheu-se debaixo dos lençóis, seu miúdo corpo tremendo de frio, apesar de estar devidamente vestida com uma camisola enorme que cobria seus pés. Chovia muito, e os relâmpagos refletiam na janela de seu quarto, algumas gotículas de água desenhando linhas enfurecidas pelo vidro. Além delas, a garotinha ainda podia ver a silhueta da cidade de Ferassen, de um cinza quase lúgubre, os pequenos casebres de madeira enfileirados, os extensos campos de trigo e soja, as docas em que os limites do vilarejo se inclinavam gentilmente para o mar. Agora, no entanto, não havia navios nem embarcações atracados no cais de madeira. Nada além do vasto oceano que rugia em torno da tempestade.

A garotinha apertou os olhos, suspirando com força. Com o sono pesando em suas pálpebras, sua atenção vagou pelo quarto acolhedor — as paredes de um tom amarelado que se assemelhava aos girassóis que a mãe plantava, o guarda roupa desbotado cujas portas nunca fechavam por completo, a casinha de bonecas ornamentada em madeira, e por fim, a pequena estante de livros repleta de contos de fadas antigos, histórias que seu pai narrava entusiasticamente para si em noites como aquela. Ela se enterrou debaixo das cobertas conforme ouvia o barulho insistente da água caindo. Já devia ser tarde e quanto mais o tempo se arrastava, menor era sua vontade de dormir.

De repente, um barulho alto rasgou os céus e a menina encolheu-se ainda mais. O céu estaria gritando? Questionou-se. Imaginou o que deveria ter acontecido para alguém tão forte e inabalável como ele chorar e ficar com raiva. Seus pais, por exemplo, nunca choravam. Mesmo quando a colheita do mês era insuficiente, mesmo quando sua mãe não conseguia ganhar muitas moedas com os vestidos que tecia, ainda que tudo o que tivessem para comer durante o jantar fosse um único pão. Então, por que o céu estaria tão triste e enraivecido? Em vez de pensar em uma resposta, Katrina fechou os olhos, rezando para que aquela tempestade parasse. Ela não tinha nem dez anos, porém já era velha o suficiente para recitar o Cântico dos Sete sem errar uma palavra, a oração antiga que sua mãe ensinara preenchendo o silêncio da noite. Afinal, o que mais podia fazer?

Quando o inverno chegava, trazendo consigo a escassez de suprimentos, Katrina pedia aos deuses por mais comida. Quando via a preocupação cintilando nos olhos cansados e culpados do pai, suplicava para Galadryel e quem mais pudesse escutar. Mas naquela noite, a chuva estava alta demais para os deuses ouvirem o clamor de uma garotinha.

Relutante, a menina abandonou o calor dos lençóis e levantou-se da cama, calçando suas pantufas de gatinho — as quais ganhara de presente de aniversário —, antes de caminhar até o quarto dos pais. O corredor era estreito, iluminado apenas por uma lamparina que eles sempre deixavam acesa. Ela bateu vagarosamente na porta e entrou em seguida.

— Mamãe? — Chamou baixinho, contudo não houve nenhuma reposta. Então, andou cambaleante em direção à cama, o tecido de algodão arrastando-se no chão de madeira, e disse outra vez. — Mamãe?

Suzane acordou, sobressaltada. Seus olhos se depararam com Katrina parada diante de si, os braços miúdos agarrados ao corpo, o rosto negro quase que assustado. Com a voz sonolenta, perguntou:

— O que aconteceu, raio de sol? Não consegue dormir?

A menininha fez que não com a cabeça, e a mãe ergueu os braços, puxando-a delicadamente para a cama. Seu pai remexeu-se um pouco, entretanto continuou a dormir. Katrina quase sorriu. Suzane sempre tivera o sono mais leve, enquanto Henry não acordava nem mesmo se o mundo estivesse caindo em ruínas como em um dos seus livros.

— Estamos aqui — sussurrou sua mãe, embalando-a num abraço que trazia a recordação de um lar. — Estamos aqui, Raio de sol. A chuva está falando baixinho, você pode dormir agora.

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